sexta-feira, 24 de julho de 2009

Morfina.

Por Felipe Grilo.


Acordo, faço afagos no meu gato e vou tomar café que sobrara na garrafa térmica, que desconfio não terem fechado direito. Amornado pelo tempo, o líquido escorre devagar e se mescla ao leite engordurado que perecia na leiteira. Ainda resta a fumaça do que antes deveria ser calor, e a respiro antes do primeiro gole para não perder a sensação. O pão está envelhecido. Parece ter a minha idade. Não sinto vontade de encostá-lo na boca. Recordo que não me lembro do meu último beijo em alguém.

Com meu pijama, um casaco e um chinelo improvisado nos pés cobertos pela meia, ando cuidadosamente pelo corredor. Pelas beiradas vou dobrando as curvas, até chegar aos baldes de lixo.

Separados entre recicláveis e não-recicláveis, cada sacola nas minhas mãos possui uma cor: verde para os primeiros, azul para os segundos. Em caso de dúvida, era só sentir o peso: restos orgânicos são sempre mais incômodos de carregar.

É uma sexta-feira chuvosa. Nove horas de um novo dia. Céu branco acinzentado. Para trás de mim, deixo a porta aberto de meu apartamento. Ainda no escuro, sem aparelhos ligados, janelas fechadas, camas por fazer e a típica poeira no ar que faz a respiração sofrer. Todos foram trabalhar e cuidar de suas vidas. Fiquei eu com o papel de arrumar a bagunça da noite anterior.

Ao olhar para as janelas vizinhas, sinto que minha cidade não saiu das cobertas: as nuvens cobrem cada casa, cada jardim e cada passante na rua em seus sóbrios guarda-chuvas. A água que cai do céu é silenciosa e melancólica – me lembra as lágrimas de alguém que dorme com saudades de outro alguém. Talvez sejam as minhas. O efeito anestésico das lembranças efêmeras só é quebrado por uma máquina de lavar. Um estômago metálico que gira com a ânsia dos trapos sujos que comeu.

Abro a tampa de um dos baldes com as duas sacolas nas mãos. Mas há algo errado. Não lembro qual é o lixo reciclado e qual não é. Esqueci também qual a cor de cada um, e por segundos ambos – restos orgânicos e plásticos - pareciam ter o mesmo peso. É difícil definir a sensação, pois nem esquecimento parecia. Tudo o que fiz, por segundos intermináveis, foi observar as sacolas, os baldes e meus pés. Talvez nem observar seria: não havia nada de incomum a não ser eu mesmo.

E assim fiquei: atônito. Sem movimentos. Sem pensamentos ou sensações. Sem frio, sem calor, sem ar para respirar. Nem mesmo vestígios de existir. Apenas permanecia. Imóvel. Calado. Ausente. Senti alguém se aproximando, fazendo sombra. Sem pudores ou vergonhas daquela cena patética, virei-me e descobri ser apenas um vaso de planta. Como não puxou assunto, voltei à minha letargia.

Por um momento, parecia que havia penetrado no insólito mundo real, e que dele não conseguia despertar. Por um momento, então, notei que nada havia. Tentei me lembrar de quem sentia saudades, e não havia ninguém. Por quem havia chorado, não havia. Quem tivesse beijado, não havia. Não tinha havido festa na noite anterior. Nem pessoas que tivessem ido trabalhar, nem cuidar de suas vidas. Não morava com ninguém.

Tudo o que havia era o lixo, o barulho da máquina e o café amargo no meu estômago. Este sim metálico, que girava com ânsia dos trapos sujos que comi: a miséria, a sofreguidão, os momentos insossos dos quais me alimentava há tantos anos. Senti uma vontade quase incontrolável de vomitar a mim mesmo. Decidi rápido qual sacola ia em qual balde, voltei a passos rápidos, fechei a porta de meu apartamento escuro e não saí mais pelo resto do dia.

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Agora que estou com um pouco de tempo, resolvi escrever pra tirar um pouco a poeira do blog =). Ah, fiquem tranquilos: não é autobiográfico.