quinta-feira, 31 de julho de 2008

Um papo com a vida.

De Adriana Hernandes.

Ele resolveu bater um papo com a vida, isso aí, com a vida. Estava à toa nela mesmo, e como não tinha um amor a chamá-lo pra ver a banda passar, decidiu ter dois dedos de prosa, coisa rápida, com essa nem tão velha conhecida.

Sentou no banco da varanda de casa. A vida ficou parada em sua frente. Não conseguia descrever sua forma com exatidão. Via um misto de momentos que havia passado, sentimentos diversos que o acompanharam sempre, ações perpetuadas com sucesso, outras que fracassaram, e mais umas tantas que deixara de cumprir. Não quis entender o contorno que a vida tinha, decidiu aceitá-la como ela era.

Pra começo de conversa resolveu perguntar por que, ultimamente, ela se mostrava tão complicada. Esperava uma reposta linear, direção reta. Mas a vida é cheia de artimanhas. E sem sair de sua frente, conseguia sussurrar as frases ao pé de seu ouvido, de forma que somente ele pudesse escutar, de antemão o alertou: “quando o assunto é nossa vida, o melhor caminho é a discrição”.

Disse-lhe que nunca, em nenhum momento, fora complicada, pelo contrário, ela era mais simples do que se imaginava. Explicou que as dificuldades que recaiam sobre ela eram conseqüência da forma como nós, seus donos, a conduzíamos. Mas que todo mundo sempre acha mais fácil jogar o fardo no seu colo do que carregá-lo com as próprias mãos. Surpreendeu-se com tal réplica, ele esperava uma solução. Concluiu que a vida costuma dizer o que quer e não o que queremos ouvir.

Mas não era só isso que intrigava aquela mente inquieta. Ele queria entender – ou pelo menos tentar - porque se sentia diferente de todos, esparso do mundo, como se não fizesse parte de nenhum universo. A vida respondeu que ser diferente era ótimo, que parte de sua graça estava em não ser igual aos outros, não seguir normas físicas, nem comportamentais, tão pouco racionais, e ainda exemplificou: “Experimente pôr um girassol em meio a um roseiral. A diferença também é atrativa”. “A vida é direta, mas não perde a ternura”- pensou o moço.

Os dois dedos de prosa que mais pareciam um questionário se estenderam pela tarde inteira. Divagou sobre tudo, coitado, chegou a se revoltar, quase levantou a voz. Mas a vida não se abateu, continuou firme e forte diante dele, recebendo aquele bombardeio de “por quês”. Alguns ela respondia, outros não. Ela era uma vida jovem, e certas repostas só se obtêm com a amiga experiência. Não tinha jeito, ele teria que esperar.

Já no fim da conversa, perguntou como deveria agir pra que ela fizesse algum sentido. A vida informou que não era necessário caçar um sentido por aí, como se fosse um tesouro. Ele aparece de forma espontânea, em ocasiões especiais, onde menos se espera. Poderia ficar despreocupado, na hora em que ela fizesse sentido, ele perceberia sem nenhuma dificuldade.

Resolveu dar aquela história por encerrada, acreditara que estava mais confuso agora, do que no começo do papo. Entrou em casa e foi direto pro seu quarto, buscou uma toalha, ganhou o corredor a caminho do banheiro. No meio do trajeto deu de cara com sua mãe que, limpando as mãos no avental, disse: “Menino, ande logo com esse banho que a janta tá quase pronta. Fiz aquele arroz de forno com bastante parmesão, do jeitinho que você gosta.”

O rapaz pôs a toalha em volta do pescoço, segurou o rosto da mãe delicadamente com as duas mãos, deu-lhe um beijo em sua testa e entrou no banheiro, rindo.

A mãe não entendeu nada. Ele sim.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

precisa-se de apontador.

De Cristiane Senn.

escrever parece tão mais simples quando não se tem a obrigação de fazê-lo. agora precisarei de, pelo menos, uma nova idéia por semana, e já começo com reticências cerebrais de níveis imensuráveis. mas sempre existem fórmulas e truques para esse tipo de problema - elas estarão muito presentes por aqui às quartas-feiras. aliás, podemos estabelecer a quarta-feira como o dia dos truques para persuadir o leitor de que está lendo alguma coisa, quando na verdade não está. perfeito.

uma das coisas que aprendi durante a faculdade (não necessariamente em função da mesma), foi a técnica do uso da metalinguagem como preenchedor de lacunas em embutidos suínos, vulgo enche-lingüiça. no presente caso, posso tanto continuar discorrendo sobre o ato quanto sobre o processo de escrever, pensamento e digitação, respectivamente. o primeiro me parece um assunto bastante batido, visto que provavelmente não sou o único ser do universo a ter súbitos vazios intelectuais.

neste momento encontro-me sozinha com o teclado em situação nada romântica. na realidade, me acostumei com ele de forma estranha, pois sempre gostei mais de papel e caneta. digitar é uma coisa que você tem que aprender na marra, e digitar rápido é uma questão de tempo, muito tempo. hoje, por exemplo, as coisas saem tão automaticamente quanto respirar. mas há uns 5 anos atrás, como eu sofria esperando chegar o tempo em que eu ía conseguir digitar sem olhar para o teclado e sem errar uma palavra - lembrando que essas duas últimas coisas ainda não acontecem naturalmente.

trata-se de conhecer aquilo que você maneja. um teclado, depois de 7 ou 8 anos, é como um lápis: nenhum segredo. talvez alguma surpresa, como quebrar a ponta do lápis ou apertar o power ao invés do print screen. Aliás, power é uma tecla tão inútil e irritante quanto um lápis sem ponta.

lembro-me da dificuldade que eu tinha em aceitar os números agrupados à direita. "por que eu preciso ir até LÁ se tenho todos eles bonitinhos e em ordem bem na minha frente?". e aí, você precisa fazer um relatório sobre uma pesquisa quantitativa, um trabalho de finanças ou uma receita de pato ao molho de mel e amêndoas recheado com tomates secos ao manjericão. é aí que a necessidade te faz aprender rapidinho a gostar do lado de LÁ. mesmo porque, ali em cima, o 0 está bem distante do 1. imagine se cada vez que você for digitar 101 precisar fazer duas viagens de 9 teclas?

realmente parece o cúmulo da preguiça. e é, não nego. a posição das letras, desde a máquina de escrever, é o cúmulo da preguiça. "praticidade" e "agilidade" são desculpas de um mundo preguiçoso. aos oito anos me parecia muito mais plausível uma coisa que tivesse, no máximo, duas fileiras, e em ordem alfabética. q, w, e, r, t, y... é realmente uma coisa bem complicada de se gravar, mas é só passar um dia inteiro tentando digitar o alfabeto em ordem que já pegamos o "espírito" da coisa toda. o espírito preguiçoso.

teclado de computador é ainda pior (melhor). "porque eu preciso escalar todas estas teclas cada vez que tiver de escrever novidade?" pensou o primeiro designer de hardware, adaptando a máquina de escrever às novas tecnologias e à nova geração de preguiçosos.

obs 1: a procrastinação crônica resulta em textos tão inúteis e irritantes quanto um lápis sem ponta ou um mouse sem scroll.

obs 2: texto feito no bloco de notas, em que, para a realização de letras maiúsculas, se faz necessário o uso da tecla shift, preterida pelos árduos usuários do microsoft word.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Insira um título aqui.

De Vinícius Noronha.

Ok leitor, a hora é essa e dessa vez você vai redigir essa crônica comigo. Ah, achou que ía ficar na moleza, no bem bão, só esboçando sorrisos com os textos, que expõem características triviais de cada ente que o cerca, extravasando "é isso mesmo, como não pensei nisso antes"? Ou mesmo lendo as bobagens que esse pretenso autorzinho de merda ía escrever, e ainda perguntando "será que ele pensou mesmo que isso fosse significar algo pra mim?". Pois bem, te peguei no pulo! Te botei contra a parede! Sem escapatória, sem desvios ou paliativos.

Quer desistir, é? Tá certo, tem milhares de outros blogs por aí em que o autor não fica querendo desafiar quem se dispõe a ler algo dele. Como se ler fosse o bastante. Como se catalogar mais uma crônica no teu armário mental de textos lidos fosse de fato fazer de você uma pessoa mais culta, mais articulada, com mais sacadas pra disparar no papo de botequim mais próximo. Tudo muito simples, né não? Não!!!!! Definitivamente e desesperadamente não. Se desistir, molenga, você vai ser mais um desses pulhas para quem leituras são artifícios de auto-promoção, ou recados pro ego como manutenção de conteúdo, ou pior, uma escada para o bom e velho status quo das estatísticas das poucas pessoas desse país que se dispõem a ler, a ter um humor mais sofisticado, e a esquecer o que move esse tipo de exposição crua.

Ah, e não é que você realmente leu tudo até aqui? Bacana, me lembre de bater palmas pra você quando chegar no fim dessa crônica. Principalmente porque ela não é mais só minha, como você deve recordar, o que me tira um puta peso das costas e reduz o sarcasmo que poderia ter sido interpretado na frase anterior. Olha que legal: posso até cruzar os braços aqui, pegar algo na geladeira, verificar minha caixa de e-mails, ou chegar ao cúmulo de acabar o texto aqui, que tudo aqui ainda fará o sentido que eu quero que tenha... E o que significa tudo isso? "Que petulância do caralho desse cara!" eu deduzo que seja o seu pensamento. Pode ser. Aliás te confesso que você está mais quente do que frio nessa reflexão. Sabe o que é, leitor? Vou confessar uma coisa: Hoje eu não tô nem um pouco a fim de escrever nada. Sei lá se é porque ouvi muita merda, nesses últimos dias, de quem lê muito e de quem não lê porra nenhuma. Escrever tá cada vez mais complicado, porque (ou consequentemente) ler também tá virando artigo de museu. Digo, ler mesmo, não levar os olhos pra passear em coleiras indestrutíveis.

Sempre achei que o maior desafio de quem lê fosse quando, finalmente, passasse pro outro lado. Porque escrever é um ato de agressão, um rito de expurgação, um manicômio em conta-gotas. Ótimo que as pessoas se identifiquem com inúmeras leituras por aí. Esse e todo blog, acredito, é criado com esse intuito. Mas a mão única devia ser, sempre, mão dupla. Afinal, qualquer manifestação de teclas sendo pressionadas e canetas gravando tinta por linhas é um meio de encontrar um igual, ainda (ou principalmente) que sejamos nós mesmos fora da gente. Motivos pra fazer esse exorcismo a gente sempre encontra: Pessoas à nossa volta, encrencas que nos perseguem, alegrias esculpidas em sonhos, tristezas que se materializam no silêncio. Mas, ao final de tudo, o que sobra são dedos atolados em uma inanição graúda. Afinal de contas o que está acontecendo?

Leitor, a crônica está chegando ao fim. Escrevemos de fato alguma coisa, quando o que resta é essa prévia concepção de que as flores crescerão, os pães estarão fresquinhos na padaria, e alguém nesse universo vai substituir qualquer catástrofe por verbetes de algum dicionário poerento? Pô, alguém te entende, lê tua alma, traduz as sentinelas do teu desassossego. E é fácil, ao mesmo tempo que dói, mas tudo bem. Então, meu amigo, me explica: pra quê escrever?

Talvez por isso mesmo. Pense que alguém, com palavras do próprio punho, leu a tua alma. Agora pegue uma caneta e um papel e se pergunte: isso devia mesmo ser coisa tão simples?

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Serviço militar obrigatório.

De Sergio Faria.

Ontem tive um sonho estranho. Sonhei que eu tava prestando serviço militar no exército e tendo que conviver com umas figuras toscas num ambiente que me lembrava um pouco os campos de concentração de Auschwitz, me sentia como um condenado cumprindo pena. Uma sensação horrível. Acordei aliviado. Esse sonho me fez lembrar de uma época legal da minha vida, do período em que me alistei e que era uma fase de descobertas. Me imaginei hoje tendo que servir. Nem fodendo! Com aquela rotina rígida certamente eu seria um desertor. Acordar muito cedo, tomar banho de água fria, tomar esporro de graça, ficar horas sem poder se mexer entre outras merdas não combina comigo.

Acho que o quartel só faz bem mesmo pro playbozinho folgado e pro moleque pobre sem profissão. Pro primeiro ensina disciplina e igualdade, pro segundo dá um salário pra ajudar na sobrevivência. Mas normalmente os grandões abusam do poder e exageram: o "reco" é humilhado na frente de todos e ainda tem que concordar com um "sim senhor". Isso pra um cara orgulhoso como eu não daria muito certo. Episódios envolvendo coações e maus tratos lá dentro não são novidades pra ninguém. É barra pesada. Me lembrei do dia em que passei pelos primeiros exames pra entrar no exército. Imaginem centenas de homens agrupados e enfileirados num galpão e todo mundo peladão. Pois é. Essa cena pra mim foi traumática.

Felizmente parei por ali, fui dispensado logo de cara por excesso de contingente provavelmete pelo tamanho (ser baixinho tem suas vantagens). Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Sempre achei que toda a ralação que a rapaziada passa ali dentro não serve pra muita coisa. E levando em consideração o montante de dinheiro público que é destinado a manutenção daquele troço, acho tudo um desperdício. Eles argumentam que toda essa preparação é pra eventuais missões e garantia da soberania do país. Porra! Há quanto tempo eles vem com esse papinho mesmo sabendo que não corremos o risco de ter uma guerra? Quero dizer uma guerra com outro país, porque na verdade já existe uma guerra aqui dentro mesmo (vide minha "cidade maravilhosa").

Sou a favor do exército nas ruas dando um suporte pras polícias. Não tô falando do recruta sem preparação nenhuma subir o morro atrás de bandido, mas reforçando a segurança em outros lugares como nas escolas por exemplo. A quantidade de homens nas ruas faria uma diferença enorme. Mas eles não aceitam essa possibilidade. A não ser quando é conveniente pra eles, quando é pra inglês ver. Alguém aí lembra da ECO 92 realizada no Rio de Janeiro? Naquela ocasião o governo deslocou tropas do exército pras ruas e morros da cidade pra garantir a segurança pública enquanto rolava aquela conferência. Naqueles dias o índice de criminalidade foi reduzido a quase zero! Depois que a cúpula das Nações Unidas foi embora, tudo voltou a ser a mesma zona de antes. E hoje piorou, né? Mas o governo bate o pé e não libera as forças armadas pra proteger o povão.

Dizem que a função estratégica delas não é essa. Enquanto isso nossos rapazes brincam de soldadinhos fazendo fortes treinamentos com armas pesadas, aprendem a passar fome, rastejar na lama e o diabo a quatro. Enquanto isso, por causa da corrupção, a bandidagem tá solta nas ruas usando armamento exclusivo das forças armadas, e contra a gente!

domingo, 27 de julho de 2008

Peixe grande ou lambari?

De Daniel Ramos.

Parando para analisar, não me considero um cara preconceituoso. Claro, não existe uma pessoa 100% sem preconceitos. Todos nós, por vezes, julgamos pela capa ao invés do conteúdo, é próprio do ser humano. Comecei tocando nesse assunto tão delicado para relatar dois exemplos de experiências distintas dentre muitas desse tipo que já vivi, mas que ilustram bem o título desse post.
Começo por uma festa meio high society a qual fui convidado. Em primeiro lugar meu traje esporte fino já começou uma derradeira desgraça, pois como não tinha um sapato que combinasse, acabei usando um all star preto e usei tinta nanquim para cobrir a marca. A única camisa social que tinha a mão era uma azul-cobrador de ônibus, mas na “falta de azeitona eu utilizo bala de goma verde” e rezo pra Deus tenha pena da minha dignidade.
A festa extremamente bem decorada, com uma iluminação de muito bom gosto e uma mesa de buffet que devia ter petiscos de uns onze animais diferentes, alguns até extintos. Os contratados da festa sempre muito solícitos, mesmo quando era para tentar me explicar o que era aquele brulée de carnard, e todo o tipo de guloseima, que sinceramente algumas eu achei que eram de borracha. As pessoas extremamente refinadas, delicadas... As mulheres desfilando seus belos longos e os homens se esgueirando em suas becas comportadas, ao passo que eu parecia um holofote azul bebê no meio daquele mar de cores quentes e neutras. Agora eu mesmo me pergunto "que diabos eu fui fazer nessa festa?".
Respondo: Aniversário de vinte anos da filha da minha ex-chefe da época. Pois é, acho que minha ex-chefe foi a única pessoa com a qual falei por uma distância de menos de vinte centímetros. Minto, o segurança que me apalpou na entrada foi a maior prova de carinho que tive durante a noite. Enfim, passei a noite incólume e acho que nem se fingisse um ataque epilético alguém se atreveria a olhar para meu corpo semi-moribundo. Acabei a noite em casa, assistindo o dvd de Smallville, mas não sem antes colocar um pouco daquele brulée de carnard no bolso da minha camisa de cobrador.
A título de comparação e para assim encerrar a idéia a qual me propus a escrever, vou descrever outra festa, dessa vez mais recente, a qual fui convidado. Na contramão do que foi a primeira, essa foi como se fosse o negativo da foto, o Yin do Yang da corrente. Pra começo de conversa, esse regozijo coletivo foi num beco no meio de Mongaguá, mas como fui de carona, não reclamei da distância. Um casa simples, nada de glamour, sem as luzes da outra, tampouco a farta mesa de buffet. De fato, em substituição a essa duas, tivemos uma luz roxa que com certeza foi roubada de algum motel de beira de estrada e uns quinze ou vinte bem casados que as tias gordas se estapeavam para pegar. A música como sempre algo de primeira, MPB legítima, afinal é sempre bom revisitar os clássicos como “Adocica” ou então remexer o esqueleto ao som de pérolas modernas como “ele não monta na lambreta”. Os diálogos nas rodinhas de conversa eram algo de fazer Vinícius de Moraes se inspirar na hora: “Nossa princesa que perfume é esse? É Vagabunda de Cais da Natura!!”
Apesar de todo esse aparato tecnológico, o fenômeno foi inverso ao dão primeiro festejo, pois mesmo com os parcos recursos, as pessoas ali fizeram o máximo para que eu me sentisse bem, e olha que dessa vez fui de penetra e teoricamente era mais um na briga dos bem-casados. Me senti bem melhor recebido e o fato de não usar a camisa de cobrador ajudou se bem que o dono da casa tinha uma igualzinha escrita CMTC (maldito copião) .
Assim, me fiz a pergunta: o que é melhor? Ser um lambari num lago cristalino, ou um peixe grande num pequeno riacho? Não que sinta inferior ou superior a ninguém, mas parece que determinados ambientes tem o poder de mexer diretamente com a nossa auto-consciência, e embora passemos mais tempo tentando ser o que não somos, esses acontecimentos nos mostram o quanto ainda estamos longe de encontrar nosso meio ideal.

sábado, 26 de julho de 2008

A fabulosa arte de presentear.

De Felipe Grilo.

Não há cultura neste mundo que não possua o hábito de dar presentes. Afinal, é uma troca de carinho diplomaticamente poderosa: por um montante de pedrinhas, galinhas, espelhos e outras mulambas, Portugal já ganhou um país (hoje, o Risco Brasil já vale um pouco mais que isso).

Desculpem, não vim falar sobre política e não gosto do assunto. Fica para uma próxima. Tudo isso foi para dizer que - perdoem o trocadilho desta vez (sábado de manhã, pô, dêem um desconto) - desde que Brasil é Brasil, presentear virou mesmo programa de índio. Índio não sabe dar ou receber presente.

Cada pacote é uma surpresa que, além da linda lembrancinha (que, ah! você não precisava!), é possível ver, no brilho dos olhos dos presenteados, toda aquela sensação de alegria súbita a cada desenrolar dos laços dos pacotes, juntamente à sensação de laços de amor, amizade ou contas bancárias ainda mais fortes e unidas. Lindo de descrever, mas a verdade é a seguinte: a sensação de ter feito merda ao escolher e receber um determinado presente vem imediatamente antes de toda esta simbologia. Quem presenteia sabe que a reação, por parte do presenteado, vai ser maravilhosamente falsa se não for nada daquilo que ele queria. É ou não é?

Claro que há exceções. Dona Zilda, que "ama detestando" cartões de aniversário com mensagens clichês, ganhou de suas sobrinhas gêmeas de 6 anos algo parecido, mas diferente: um monte de pedaços de folhas sulfites rabiscados, colados uns nos outros pela ponta, com um "Parabéns tia!" escrito na frente aos garranchos de criança. Claro que ela adorou, afinal, presente de criança é sempre fofo. Só tem um detalhe:

- Aaaaah, que lindo o cartão que vocês me deram!

- Não é cartão, tia! É um livro!

Ainda bem que ela gosta de ler tanto quanto eu gosto de camisetas laranja. No entanto, um dia fui comentar este meu lado fashion com minha avó. Durante os próximos aniversários, natais e dias das crianças, ganhei cinco camisetas laranja do mesmo tom e tamanho.

Voltando um pouco aos cartões, costumo dizer que são bregas, é verdade, mas o tempo passa, a era da informação vêm e a coisa só piora: alguém aí já escreveu ou recebeu "depô" de aniversário no Orkut?

Tem gente que se profissionaliza. Alguém aí é do tempo das tele-mensagens? Conheço gente que ganha dinheiro fazendo as pessoas se emocionarem com mensagens de PowerPoint, mas sem o PowerPoint.

E presente dado para criança? Que terror que vai ser é se ela for sincera! Porque, para crianças, qualquer um entra num dilema: agradar a criança ou aos pais dela? Dar um brinquedo caro, cheio de frescurinhas, para a criança adorar e engavetar quando acabarem as pilhas ou dar roupas, coisa que ela vai tirar do pacote fazendo muxoxo?

Todo final de ano precisa ter aquilo de amigo secreto. Vaquinha de cinco reais na empresa, parada no bar, fazer discursinho e abrir as lembrancinhas. Geralmente gravatas, porta-retratos, souvenires ou enfeites de mesa. Inimigos secretos são mais divertidos: sutiãs tamanho GG, chocolate em formas "diferentes", cintos de oncinha, fraldas, enfim. Acho que o meio termo dos dois devem ser os chás e bebê (Helô, não é nada pessoal, tá? =P).

No entanto, dignas de todas as menções honrosas deste texto são os presentes entre namorados, maridos, amantes ou pretendentes. Até hoje imagino a cara da minha amiga ao receber, do seu primeiro pretendente a namoradinho – e na frente de todos os amigos, claro – um pote de goiabada (isso mesmo: um pote de goiabada) junto a uma declaração de amor feita de joelhos. O cara devia achar que estava abalando. De fato: ela tem traumas até hoje.

Enfim, para finalizar, seja lá o que for dar de presente, dê com sinceridade. Faça como um amigo meu, o Coca: só para zuar, ele deu a um amigo nosso uma camiseta usada e um chaveiro. Nunca vi os dois rindo tanto juntos. No aniversário do Coca, fui pobre: dei uma poesia de tolação. Ele curtiu bastante.

***

Pessoal que está me lendo, desculpe se o texto não está as mil maravilhas. Estava planejando só me apresentar ou escrever algo que colocasse meu estilo para conhecimento de todos. No entanto, calhou que justamente hoje é meu aniversário (faço 20 anos) e, então, escrevi não com o objetivo de ser apenas temático, mas sim aproveitar este espaço no blog da forma como ele é para mim: um ótimo presente que vocês me deram.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Sobre desejo assassino e anões.

De Heloísa Noronha.

Em primeiríssimo lugar, gostaria de registrar que é e será um prazer imenso colaborar com esse blog. Sempre tive vontade de ter um, mas a falta de tempo e a enorme quantidade de compromissos que costumo assumir (muitas vezes sem saber se darei conta ou não) nunca me deixaram levar a idéia adiante. Assim, participar desse blog tem sabor de desejo realizado – ainda mais depois de constatar a ótima qualidade dos textos aqui postados.
Para a minha coluna de estréia, havia pensado em escrever sobre algum tema sério, edificante, construtivo ou, no mínimo, algo digno de uma jornalista. Meu irmão Vinícius, porém, me deu aval para publicar qualquer coisa, qualquer coisa MESMO, então, sei lá, vou me jogar e espero não queimar o filme do blog logo de cara.
Nesse exato momento – o relógio do computador do trabalho registra 13h03 – estou beeeeem louca. Há cerca de uma hora e meia tomei um comprimido de Dramin, que, para quem não sabe, é um remédio que controla enjôos e ânsia de vômitos e é praticamente o Santo Graal das gestantes. Estou grávida de três meses e só apelo para o Dramin em última instância, porque os efeitos colaterais não são nem um pouco agradáveis: cabeça pesada, olhos que não conseguem se manter abertos, tontura e um sono desgraçado! Parece que as pessoas estão falando em slow motion comigo, e eu não consigo completar uma frase inteira. Sei lá, virei quase uma versão míni da Luciana Gimenez.
Sim, estou feliz, realizada, mal posso esperar a hora de ter um bebê bochechudo e fofo nos braços... Mas ser mãe é uma coisa, estar grávida é outra totalmente diferente. A gravidez não é bem aquele estado de plenitude e paz dos comerciais de convênio médico ou da Johnson&Johnson. Por trás de barrigas empinadas e sorrisos cativantes, há todo um esquema nada glamouroso, à base de azia, de uma eterna sensação na boca de ter lambido um pé chulezento, de um cansaço homérico e de gazes promovendo uma rave dentro de você. O mais absurdo, no entanto, é mesmo a leseira mental. Todos os livros para mães de primeira viagem citam a pasmaceira dos neurônios como um sintoma natural, mas eu, pelo menos, achava que isso era um exagero, até o dia em que me flagrei dizendo "Obrigada!" ao... caixa eletrônico!! E estava caretona, sem Dramin na veia.
E os hormônios, então? Teve uma manhã, no trabalho, que cheguei, liguei o computador e comecei a chorar, sem motivo. Chorei, chorei, chorei, a secretária foi buscar água para mim e as lágrimas caíam sem parar. Me acalmei, mas à tarde os hormônios deram o ar da graça de novo: Em vez de abrir o berreiro, porém, berrei. Estava tão irritada, mas tão irritada, que mandei todo mundo calar a boca ou mudar de assunto, porque a conversa estava me irritando! Não satisfeita, ainda disse que todas as opiniões emitidas eram idiotas. Quando me perguntam se venho sentindo algum desejo exótico, tipo comer dobradinha com chantilly ou feijoada de morango, o único desejo que me vem à mente é o de matar, mas matar muuuuuitooooo.
Queria tanto passar a gravidez inteira numa montanha, comendo azeitona preta, dormindo, soltando pum em paz e assistindo comédias toscas dos anos 80. Mas não... Tenho que sair todo dia de São Caetano do Sul rumo ao bairro do Jaguaré para ir trabalhar, enfrentar um trânsito dos infernos, com a mão na boca para não golfar uma meleca azeda na calça do marido e ver coisas nojentas no caminho. Ontem de manhã, por exemplo, o trajeto me contemplou com três visões do inferno: uma mendiga nóia puxando a camiseta para cima e deixando à mostra uma pança gigantesca com direito a cicatriz, um traveco anoréxico com um shortinho enfiado no rabo e, pior de tudo, um anão em uma moto (!!!!) Pelo amor, ninguém merece, muito menos um ser iluminado que em breve vai gerar uma nova vida! Enfim, esse primeiro post é apenas um desabafo, uma espécie de Grávida Esperança. Mundo, tenha paciência com pessoas como nós, e, Universo, conspire a nosso favor. Tudo bem o pum, tudo bem o enjôo, mas anão de moto já é um pouco demais...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os cavalos sempre passam.

De Adriana Hernandes.

Já meninota ela se acostumou a acordar antes do galo cantar. Levantava correndo, disposta, preparava o café, colhia os ovos, sovava a massa do pão, chamava os irmãos e depois corria. Corria para o alto de uma pedreira para, lá de cima, ver a cavalaria da cidade passar. “Os cavalos sempre passam nesse horário”, pensava. Era sua hora preferida, se sentia tão bem. 10 minutos – ela calculava – que faziam todo o resto do dia ser melhor, fazer sentido. Depois ela se levantava, limpava o vestido que sempre ficava empoeirado, arrumava os cabelos que o vento teimava em despentear e voltava pra casa, cumprir os outros empenhos.

Seis dias por semana ela cumpria esse rito com uma fidelidade espartana. Levanta, o café, os ovos, a massa, os irmãos, as corridas, os cavalos sempre passando. Domingo acordava mais tarde, era dia de missa. Católica fervorosa, legítima beatinha, crismada, comungada. No entanto, não ouvia os sermões do padre com o mesmo entusiasmo que ouvia o trote dos cavalos, mas se conformava. Se ela tinha um dia de descanso, eles também mereciam, ora. E na segunda-feira começava tudo outra vez. No meio da corrida já imaginava os cavalos passando. Tinha seu preferido, era o décimo sétimo – havia decorado a ordem – todo preto, uma mancha cor caramelo na pata dianteira esquerda e crina repartida milimetricamente. Aquele cavalo era dela, mesmo nunca tendo chegado perto dele, nem para tocar aquele pêlo que chispava com o sol, era dela.

A meninota não demorou a assumir ares e formas de moça, mas continuava a ver os cavalos passarem. Dividia sua atenção e seu amor com o filho de um espanhol que morava por ali. Um magrelinho, loiro, de cabelo dividido ao meio, milimetricamente. O café, os ovos, a massa, os irmãos, a corrida e os cavalos pela manhã. E o banho, o perfume e o loirinho filho do espanhol na sala de casa à noite.

A moça tornou-se mulher feita, o loirinho filho do espanhol agora era seu marido. O casamento, a casa nova, os filhos - tiveram quatro -, já não podia ver os cavalos passarem, tantas coisas a fazer, tantas as obrigações, vida de gente grande. Todo ano ía aos desfiles de sete de setembro, era a chance de relembrar aquele tempo, carregava a família toda. Pouco se importava com a comemoração, como nunca estivera na escola, não sabia direito o que aquilo significava. Certa vez o filho mais velho explicou o real motivo da celebração, ouviu atenta e entendeu, mas pra ela era o dia de ver os cavalos passarem.

Os cavalos passaram, a mulher feita ganhava sutis sinais de experiência, o filho do espanhol não era mais tão loirinho e as crianças que saracoteavam pela casa já eram donas de si e assim como ela fizera um dia, também seguiram um norte. Os três mais novos casaram, o primogênito resolveu ser diferente e marchou o caminho inverso daquele que a natureza costuma trilhar, foi embora por conta própria, sem dar motivo, explicação, nem adeus. Como lembrança deixou uma cruz pesada demais, poucos conseguiriam carregar, e uma chaga aberta no coração daquela que tinha lhe dado a vida, ferida que jamais estancou.

Com o tempo ela se encontrou sozinha, as visitas dos filhos e netos não cobriam esse vazio. O marido também já tinha a desamparado, mas não por vontade própria, como fez seu menino. Foi porque tinha que ir. “Chegou a hora” – dizia pra si mesma - cresceu ouvindo essa premissa, era a única explicação que conhecia.

Os sinais de experiência se acentuaram ferozmente. Não levanta tão cedo quanto antigamente, não tem quem acordar e nem precisa se preocupar com pão, café e os ovos, tem quem se preocupe por ela. Também não corre mais, as pernas fortes deram lugar a membros finos, marcados, necessitados de cuidados dignos de um vaso chinês.

Por conta própria concluiu que não resta mais nada a fazer, só lembrar os seus apegos. Os seus meninos saracoteando pela casa, seu loirinho filho do espanhol, a corrida até a pedreira e os cavalos, que sempre passam, nesse mesmo horário.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Ser nerd.

De Vinícius Noronha.

Ser nerd não é viver em uma graphic novel idealizada: é muito mais! Ser nerd é evitar expôr o sorriso com receio de que achem algum resíduo alimentar em seu aparelho fixo, e só deixar o maldito aparelho à mostra quando tiver acometido de crises de espirro irresistíveis. Ser nerd é pensar em como seria sua vida se fosse mais alto, mais forte, mais popular, mais mais, mas projetar o futuro por reconhecimentos que nada tem a ver com esses anseios fúteis. É se concentrar nas minúcias mais desapercebidas de cada coisa, e conquistar sempre pelo implícito, confiando em sua observação aguçada pra fazer a amada se sentir única. Aliás, ser nerd é fazer declarações dignas de inspirações Sheakesperianas, ainda que não ultrapassem três palavras. E ainda gaguejadas. E não obstante acrescidas de pigarros e perdigotos soltos como efeito do nervosismo.

É não usar palavra alguma de reclamação, e ainda assim abrir berreiros incontestáveis internamente. É passar um dia inteiro em frente ao computador e crer piamente que está regojizando a vida com maior proveito que os bocós entorpecidos de álcool e ficadas insignificantes. É ainda comemorar o novo download, e ter um colapso depressivo cada vez que o arquivo chegar corrompido e impossibilitado de execução. É encontrar referências em coisas que ninguém nunca ouviu falar. Ser nerd é dar uma gargalhada desengonçada, ao lado dos colegas, justificando que tal professor lembra muito o Steve Buscemi, pra ouvir, na sequência, o coro: "Hã?".

Ser nerd é despejar acidentalmente fluídos e secreções diversas, via oral ou nasal (ou mesmo por outras vias menos dignas de comentários), e assim divertir aos demais, pobres normais, que não sofrem dessas incontinências. É lamentar a normalidade que o cerca, com tantas pessoas plasticamente felizes que acreditam que suas vidas tem o valor da imagem que projetam. Ser nerd é saber que Linux não é nome de cachorro, é erguer um templo para Tolkien, é se alimentar de junk food como 80% da humanidade, mas ser o escolhido a dedo pela graça dos elfos para ter as espinhas mais grotescas.

É ainda ser nerd bisbilhotar em e-zines nomes de bandas e cineastas de países cujo PIB é menor que o do Estado de Mato Grosso, e compartilhá-los com os demais asseclas (quer dizer, não todos os nomes, pois ser nerd também é ter domínio sobre algo inédito que ninguém nunca iria se preocupar em descobrir se não for um dos mesmos, e todos, absolutamente todos os nerds, tem que ter sua moeda do Tio Patinhas). É ser fã incondicional de uns seis artistas e ignorar todos os demais (dos quais outrora também já foi fã), é ler a New Music Express pra falar mal, mas baixar todas as músicas citadas na revista, é achar a MTV a maior idiotice do mundo, mas secretamente assistir a todos os programas (pra coletar motivos sinceros que atestem sua ojeriza, claro), é criar gírias estranhas na internet e se divertir horrores com isso. É tornar o milk-shake um campeão de vendas e ainda é dar rios de dinheiro para a indústria farmacêutica.

Ser nerd é ter na casa seu reino, e no seu quarto, sua fortaleza. É usar sua aptidão aritmética como desculpa pra aproximação com colegas. É ser extremamente requisitado em provas e prestigiado em recuperações, como o cara que pode salvar a pele de todo mundo com suas anotações e colas. Ser nerd é, em dados momentos, roubar a atenção das garotas por uns poucos segundos, exalando sutilezas e olhares constantes, pétreos, tão sinceros quanto ingênuos, que logo vêm a fantasia se desmanchar quando a admiração delas se desvia pro garotão de porte atlético e mãos atrevidas, pra quem a vida é se servir de um farto banquete, enquanto, em sua sina, o nerd deve contentar-se com as sobras.

É tentar encontrar, em confissões bloguinianas, um alívio para as angústias que o assola. É choramingar pelos amigos escassos que possui, mas logo se encher de alegria por saber que aqueles poucos amigos são pra vida toda. É ser compreendido pelos iguais, e mesmo assim atirar o rótulo de "nerd" pra cima deles, nunca aceitando-o para si. Ser nerd é ter informações privilegiadas sobre tudo, e assim poder se contemplar com um pouquinho de poder e de orgulho, afogando a baixa estima, e crendo um tico mais ser o cara bacana que os únicos que o conhecem bem tanto proclamam.

Ser nerd é tropeçar no cadarço, quebrar dente na pia, colocar band-aid até no cabelo. É demorar 5 minutos pra falar uma palavra de três sílabas a alguém que nunca viu na vida. É calcular, milimetricamente, a forma mais eficiente de passar desapercebido pelos outros e assim não ter o seu mundinho invadido. E, ao mesmo tempo, é desejar ansiosa e desesperadamente que alguém invada o seu mundinho e descubra a pessoa dedicada, prestativa, sensível e muito engraçada que se esconde por aquela carcaça branquela-rósea e óculos com lentes quase tele-objetivas.

Ser nerd é conhecer, precocemente, a violência fulminante das paixões platônicas, antagônicas, irônicas. É amar idolatrando, e idolatrar se odiando. É se trancar dentro de si por medo de como o mundo irá tratar as suas dúvidas e inquietações. É afogar as mágoas com leituras, cultura inútil, super-heróis, Mario Bros e Magic the Gathering, e manter as companhias imaginárias para muito além da infância. É notar, em relações tão insensibilizadas, que o valor da sua preocupação com coisas declamadas mundanas pela voz burra do senso comum é inestimável. Ser nerd é odiar terminantemente as pessoas por ter exata consciência do que é uma entrega sincera e devota, mesmo sem ter vivenciado muita coisa além da calçada da sua rua.


Uma homenagem a Paulo Mendes Campos e Millôr Fernandes.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Procurando Nemo.

De Sergio Faria.

Há alguns meses atrás li numa edição da revista da MTV uma matéria sobre casais que transformaram o que poderíamos chamar de "amor impossível" em final feliz. Na tal matéria, tinha a história da moça que por solidariedade resolveu escrever cartas de apoio pra um presidiário que era irmão de uma amiga. Acabou se apaixonando depois que foi visitá-lo e hoje, apesar da falta de apoio da família e das amigas e do constrangimento ao passar pela revista no dias de visita, encontra com ele duas vezes por mês e encara tudo numa boa. Diz que o que vale é o que um sente pelo outro e o que estão vivendo no momento. Tem a história de uma baiana que namora um suíço há dois anos e meio mas só o encontra de quatro em quatro meses quando um dos dois voa para o país do outro. Como rola muito telefone e e-mail, ela diz que sempre sabe onde ele está, quais problemas tá passando e que ele é muito mais presente na vida dela do que muitos casais. Tem também a história da boxeadora que namora com um argentino nas mesmas condições que a baiana e o suíço. Cada um no seu país, estão sempre pedindo demissão de seus empregos pra se encontrarem. Outro casal apaixonado da matéria: a publicitária loira de 25 anos com um instrutor de capoeira de 18 anos. Mesmo com a reprovação dos amigos e a represália da família, ela não se abalou e levou o relacionamento adiante. Tá feliz e diz que apesar da idade ele sempre foi mais maduro que ela. Tem também a história da socialite de uma tradicional família milionária e judia que se apaixonou por um sujeito católico que era o segurança do avô. Ele foi demitido e ela banida da família. A vida dos dois sofreu uma reviravolta: ela abriu mão da herança e largou a mordomia. Já ele virou madrugadas chorando ao ter que deixar os dois filhos do primeiro casamento, mas não se arrependeu. Disse que por ela faria tudo de novo. Hoje dividem as contas e são felizes.

Achei todas as histórias interessantes e o lance do sentimento muito bonito. Mas acho tão complicado quando a distância atrapalha. Sempre critiquei esse tipo de relacionamento. Quando um amigo meu me disse que tinha arrumado uma namorada em Minas Gerais e um outro amigo me contou que tava com uma gaorta de Araraquara, perguntei a eles se valia mesmo a pena alimentar uma coisa tão cara e difícil, que tinha poucas chances de dar certo, de ter um futuro. Acho que é pedir pra sofrer. Hoje em dia já acho que cada caso é um caso e que só mesmo quem tá envolvido pode entender bem e aceitar esse tipo de namoro. E às vezes a distância não é o problema. Tenho uma aluna que namora há dois anos com um enfermeiro e, apesar dele morar no mesmo bairro, se encontram muito pouco. Como ele faz pós-graduação, trabalha por escala e tem muitos "compromissos", não tem muito tempo pra ela. Quando se encontram de quinze em quinze dias ou uma vez por semana, ela vai pra sua casa e junto com a sogrinha assistem fitas de vídeo. Puta que o pariu! Eles ficam sem se ver um tempão e quando se encontram vão ver filmes no sofá da sala. E o pior é que durante as minhas "aulas", ela se abriu comigo e contou que tava mal, muito deprimida por causa do pouco tempo que ficava com ele. Quando ela me contou isso fiquei cabreiro e comecei a botar pilha dizendo que talvez ela gostasse mais dele do que ele dela, e que talvez ele tivesse outra pessoa. Ela concordou comigo mas disse que o amava muito. Não me conformei com sua tristeza e questionei seu sentimento. Lembrei de uma letra do Cazuza que diz "se todo alguém que ama, ama pra ser correspondido e se todo alguém que eu amo é como amar a lua inacessível, então eu não amo ninguém. Parece incrível, não amo ninguém e é só amor que eu respiro". Depois que ela ouviu esses versos seus olhos lacrimejaram. Fiquei comovido mas disfarcei. Falei pra ela ficar a vontade e ela chorou copiosamente. Lhe perguntei como podia uma menina tão legal, bonita, inteligente e meiga continuar com uma pessoa que não lhe dava valor e a fazia sofrer daquele jeito (tô falando tudo isso baseado nas várias coisas que ela me contou). Tamanha era a sua carência e libido que ela chegou a comentar que trairia o seu namorado e até iria pra cama com alguém que não tivesse nome, endereço, história... Brincadeira? Como ela tava desempregada, não tá estudando, não tem muitos amigos e sua família é muito complicada, sugeri que procurasse passear mais, ir a lugares públicos, shopings, ir em eventos gratuitos (ela tá desempregada, lembra?), enfim, se expor mais. Assim talvez conhecesse pessoas legais pra fazer amizades e quem sabe até um carinha legal pra fazer com que ela desencanasse do enfermeiro bunda mole.

Me falando de como eram seus momentos com ele, disse que pra "variar" no último final de semana assistiu "Procurando Nemo". Adorou o desenho e se divertiu muito. Mas me confessou sem o menor pudor que o que ela queria mesmo naquele dia era "procurar o Nemo". Coitada. Ficou chupando o dedo. É foda! Ou melhor, não é. Ela conseguiu arrumar um emprego recentemente mas continua com o comédia. É aquela coisa: é melhor ser fanho do que não ter nariz. Ou seja, é melhor ter alguém assim do que não ter ninguém. Mas pensando bem e analisando com calma, talvez eu esteja errado ao questionar sentimentos, criticar meus amigos, estranhar algumas relações. Talvez eu não esteja preparado pra entender o que essas pessoas sentem. Talvez todas essas pessoas, as da revista, os meus amigos e a minha aluna, estejam amando realmente. Não o amor banalizado que a gente usa no dia a dia como "eu amo essa música" ou "dedico com todo amor" ou ainda "fiz esse trabalho com muito amor"; mas o amor verdadeiro. Mas o que é o amor verdadeiro? Sinceramente não sei. Mas eu acredito que amar seja mais do que pensar em alguém, se preocupar com alguém ou querer bem. Amar pra mim talvez seja o que essas pessoas estão fazendo: sofrendo, tentando, enfrentando diferenças, medos, preconceitos, distância... É não se satisfazer com um e-mail ou um telefonema. É querer estar junto sempre. É querer compartilhar momentos com conversas onde se quer saber tudo do outro, o que viveu desde a primeira infância até hoje de manhã. É querer compartilhar momentos de carícias onde se quer mapear o corpo do outro até decorar todas as cicatrizes e sinais de nascença dele. É enfrentar a tudo e a todos pra se ter tudo isso. Acho que amar é se anular (sem auto-destruição), acordar às 8 horas da manhã (no meu caso), cortar o braço se for preciso. Acho que quem ama mesmo morre pelo outro.

domingo, 20 de julho de 2008

A falta do "10".

De Daniel Ramos.

Caríssimos e digníssimos, gostaria de dizer que é um imenso prazer estar contribuindo com esse novo diário eletrônico. Daniel Ramos, a esfinge do escracho que vos escreve, postará sempre aos domingos, regularmente (eu espero).
Como já está evidenciado no título do post, tratarei aqui sobre a falta do "10". Calma, não se trata de um artigo sobre o popular esporte bretão, do qual me considero apenas um passivo espectador, porém um amante incansável (ok, essas últimas frases poderiam entrar no meu profile gay do orkut). O que abordarei foi uma conversa que ouvi de dois senhores, a qual me inspirou para o post, e que falava exatamente da falta de um "10". Claro que os dois sexagenários referiam-se à falta de um meia armador no futebol de hoje, aquele jogador que carrega a epígrafe de toda uma torcida nas costas, fazendo surgir das pernas a mágica do esporte. Mas o que me fez pensar é que não falta um "10" apenas no futebol, mas sim num âmbito geral. Não temos um "10" no cinema, na televisão, na música... Enfim, salvo raríssimas exceções, a velocidade e a dinâmica da sociedade consumista atual deixa pouco espaço para o sonho e a utopia, obrigando todos a um embrutecimento das próprias ações, que sempre são associadas para algum fim. Não há uma atitude que não possa ser justificada, como se apenas o que surtisse resultado fosse de alguma valia.
Então, voltando mais uma vez ao futebol, o que se vê em campo é exatamente o reflexo disso tudo que acabei de citar: força, garra, profissionalismo, porém de uma dureza que sufoca o talento. E isso é geral, haja visto que, na música, o mercado dita as regras, tratando-a como um produto frio e desprovido de alma. O mesmo vale para todas as formas de arte.
Enfim, a falta de uma maior sutileza é característica marcante do nosso meio, o que não exclui procurarmos cultivar o "10" sempre que possível.
O post dessa vez foi curto, mas é apenas o primeiro de muitos que virão (eu espero).