De Adriana Hernandes.
Já meninota ela se acostumou a acordar antes do galo cantar. Levantava correndo, disposta, preparava o café, colhia os ovos, sovava a massa do pão, chamava os irmãos e depois corria. Corria para o alto de uma pedreira para, lá de cima, ver a cavalaria da cidade passar. “Os cavalos sempre passam nesse horário”, pensava. Era sua hora preferida, se sentia tão bem. 10 minutos – ela calculava – que faziam todo o resto do dia ser melhor, fazer sentido. Depois ela se levantava, limpava o vestido que sempre ficava empoeirado, arrumava os cabelos que o vento teimava em despentear e voltava pra casa, cumprir os outros empenhos.
Seis dias por semana ela cumpria esse rito com uma fidelidade espartana. Levanta, o café, os ovos, a massa, os irmãos, as corridas, os cavalos sempre passando. Domingo acordava mais tarde, era dia de missa. Católica fervorosa, legítima beatinha, crismada, comungada. No entanto, não ouvia os sermões do padre com o mesmo entusiasmo que ouvia o trote dos cavalos, mas se conformava. Se ela tinha um dia de descanso, eles também mereciam, ora. E na segunda-feira começava tudo outra vez. No meio da corrida já imaginava os cavalos passando. Tinha seu preferido, era o décimo sétimo – havia decorado a ordem – todo preto, uma mancha cor caramelo na pata dianteira esquerda e crina repartida milimetricamente. Aquele cavalo era dela, mesmo nunca tendo chegado perto dele, nem para tocar aquele pêlo que chispava com o sol, era dela.
A meninota não demorou a assumir ares e formas de moça, mas continuava a ver os cavalos passarem. Dividia sua atenção e seu amor com o filho de um espanhol que morava por ali. Um magrelinho, loiro, de cabelo dividido ao meio, milimetricamente. O café, os ovos, a massa, os irmãos, a corrida e os cavalos pela manhã. E o banho, o perfume e o loirinho filho do espanhol na sala de casa à noite.
A moça tornou-se mulher feita, o loirinho filho do espanhol agora era seu marido. O casamento, a casa nova, os filhos - tiveram quatro -, já não podia ver os cavalos passarem, tantas coisas a fazer, tantas as obrigações, vida de gente grande. Todo ano ía aos desfiles de sete de setembro, era a chance de relembrar aquele tempo, carregava a família toda. Pouco se importava com a comemoração, como nunca estivera na escola, não sabia direito o que aquilo significava. Certa vez o filho mais velho explicou o real motivo da celebração, ouviu atenta e entendeu, mas pra ela era o dia de ver os cavalos passarem.
Os cavalos passaram, a mulher feita ganhava sutis sinais de experiência, o filho do espanhol não era mais tão loirinho e as crianças que saracoteavam pela casa já eram donas de si e assim como ela fizera um dia, também seguiram um norte. Os três mais novos casaram, o primogênito resolveu ser diferente e marchou o caminho inverso daquele que a natureza costuma trilhar, foi embora por conta própria, sem dar motivo, explicação, nem adeus. Como lembrança deixou uma cruz pesada demais, poucos conseguiriam carregar, e uma chaga aberta no coração daquela que tinha lhe dado a vida, ferida que jamais estancou.
Com o tempo ela se encontrou sozinha, as visitas dos filhos e netos não cobriam esse vazio. O marido também já tinha a desamparado, mas não por vontade própria, como fez seu menino. Foi porque tinha que ir. “Chegou a hora” – dizia pra si mesma - cresceu ouvindo essa premissa, era a única explicação que conhecia.
Os sinais de experiência se acentuaram ferozmente. Não levanta tão cedo quanto antigamente, não tem quem acordar e nem precisa se preocupar com pão, café e os ovos, tem quem se preocupe por ela. Também não corre mais, as pernas fortes deram lugar a membros finos, marcados, necessitados de cuidados dignos de um vaso chinês.
Por conta própria concluiu que não resta mais nada a fazer, só lembrar os seus apegos. Os seus meninos saracoteando pela casa, seu loirinho filho do espanhol, a corrida até a pedreira e os cavalos, que sempre passam, nesse mesmo horário.
4 comentários:
Lindo texto. Meus cavalos que passam serão os seus posts de quinta, daqui pra frente.
Tem que ter classe pra escrever textos bonitos assim sem que fiquem piegas. E pelo que li você tem =)
Ah, obrigado pelos parabéns!
Muito bonito e sensível. Parabéns!
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