quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os cavalos sempre passam.

De Adriana Hernandes.

Já meninota ela se acostumou a acordar antes do galo cantar. Levantava correndo, disposta, preparava o café, colhia os ovos, sovava a massa do pão, chamava os irmãos e depois corria. Corria para o alto de uma pedreira para, lá de cima, ver a cavalaria da cidade passar. “Os cavalos sempre passam nesse horário”, pensava. Era sua hora preferida, se sentia tão bem. 10 minutos – ela calculava – que faziam todo o resto do dia ser melhor, fazer sentido. Depois ela se levantava, limpava o vestido que sempre ficava empoeirado, arrumava os cabelos que o vento teimava em despentear e voltava pra casa, cumprir os outros empenhos.

Seis dias por semana ela cumpria esse rito com uma fidelidade espartana. Levanta, o café, os ovos, a massa, os irmãos, as corridas, os cavalos sempre passando. Domingo acordava mais tarde, era dia de missa. Católica fervorosa, legítima beatinha, crismada, comungada. No entanto, não ouvia os sermões do padre com o mesmo entusiasmo que ouvia o trote dos cavalos, mas se conformava. Se ela tinha um dia de descanso, eles também mereciam, ora. E na segunda-feira começava tudo outra vez. No meio da corrida já imaginava os cavalos passando. Tinha seu preferido, era o décimo sétimo – havia decorado a ordem – todo preto, uma mancha cor caramelo na pata dianteira esquerda e crina repartida milimetricamente. Aquele cavalo era dela, mesmo nunca tendo chegado perto dele, nem para tocar aquele pêlo que chispava com o sol, era dela.

A meninota não demorou a assumir ares e formas de moça, mas continuava a ver os cavalos passarem. Dividia sua atenção e seu amor com o filho de um espanhol que morava por ali. Um magrelinho, loiro, de cabelo dividido ao meio, milimetricamente. O café, os ovos, a massa, os irmãos, a corrida e os cavalos pela manhã. E o banho, o perfume e o loirinho filho do espanhol na sala de casa à noite.

A moça tornou-se mulher feita, o loirinho filho do espanhol agora era seu marido. O casamento, a casa nova, os filhos - tiveram quatro -, já não podia ver os cavalos passarem, tantas coisas a fazer, tantas as obrigações, vida de gente grande. Todo ano ía aos desfiles de sete de setembro, era a chance de relembrar aquele tempo, carregava a família toda. Pouco se importava com a comemoração, como nunca estivera na escola, não sabia direito o que aquilo significava. Certa vez o filho mais velho explicou o real motivo da celebração, ouviu atenta e entendeu, mas pra ela era o dia de ver os cavalos passarem.

Os cavalos passaram, a mulher feita ganhava sutis sinais de experiência, o filho do espanhol não era mais tão loirinho e as crianças que saracoteavam pela casa já eram donas de si e assim como ela fizera um dia, também seguiram um norte. Os três mais novos casaram, o primogênito resolveu ser diferente e marchou o caminho inverso daquele que a natureza costuma trilhar, foi embora por conta própria, sem dar motivo, explicação, nem adeus. Como lembrança deixou uma cruz pesada demais, poucos conseguiriam carregar, e uma chaga aberta no coração daquela que tinha lhe dado a vida, ferida que jamais estancou.

Com o tempo ela se encontrou sozinha, as visitas dos filhos e netos não cobriam esse vazio. O marido também já tinha a desamparado, mas não por vontade própria, como fez seu menino. Foi porque tinha que ir. “Chegou a hora” – dizia pra si mesma - cresceu ouvindo essa premissa, era a única explicação que conhecia.

Os sinais de experiência se acentuaram ferozmente. Não levanta tão cedo quanto antigamente, não tem quem acordar e nem precisa se preocupar com pão, café e os ovos, tem quem se preocupe por ela. Também não corre mais, as pernas fortes deram lugar a membros finos, marcados, necessitados de cuidados dignos de um vaso chinês.

Por conta própria concluiu que não resta mais nada a fazer, só lembrar os seus apegos. Os seus meninos saracoteando pela casa, seu loirinho filho do espanhol, a corrida até a pedreira e os cavalos, que sempre passam, nesse mesmo horário.

4 comentários:

Vini Noronha disse...

Lindo texto. Meus cavalos que passam serão os seus posts de quinta, daqui pra frente.

Grilo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Grilo disse...

Tem que ter classe pra escrever textos bonitos assim sem que fiquem piegas. E pelo que li você tem =)

Ah, obrigado pelos parabéns!

Heloísa Noronha disse...

Muito bonito e sensível. Parabéns!