quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Confessionário.

Por Vinícius Noronha.


- Pode começar.
- Nem sei por onde...
- Comece pelo último, ou pelo primeiro. É sempre uma boa escolha.
- Tá. Tá bom. Vejamos... Eu tinha 8 anos e corria desesperadamente atrás de um garoto que havia caçoado dos meus sapatos. A gente cruzou o pátio todo, entramos em várias salas ainda em aula, foi a maior baderna. Quando finalmente o alcancei, eu o segurei pela gola e gritei algo que nem me lembro mais. Ele então olhou nos meus olhos, já imersos, e me pediu perdão. Ele me pediu perdão.
- E você?
- E eu estava completamente cego de raiva que só vi a boca dele se movendo, sem dar a mínima atenção às palavras. Fechei a mão e dei os socos mais duros e rancorosos da minha vida. Até que alguém viesse me impedir, eu já tinha transformado a cara do garoto em uma bola de sangue. Uma semana depois, chegou a notícia de que ele havia mudado de escola. Depois soube que não era apenas de escola, mas de cidade também. E por mais que me dissessem o contrário sempre acreditei que foi por algo provocado naquele incidente.
- Esta resposta você nunca terá. Você só tem a sua escolha.
- Eu errei. Eu guardei mágoa e errei.
- Há coisas que aprendemos na vida, mas nunca nos damos conta. Este é o momento perfeito pra você perceber isso. Mas antes, me conte mais uma.
- Isso não é fácil.
- Viver só seria fácil se a gente não soubesse que é apenas um tempo extra que temos antes de algo chamado morte.
- Ahn..
- Anda, conta mais uma.
- Eu tinha 25 anos, tinha um emprego razoável e um namoro estável, que todos acreditavam que daria em casamento. No entanto, qualquer vestígio de responsabilidade já me deixava de joelhos trêmulos.
- É. Você nunca reagiu bem às pressões. Engraçado, já que se pressionava tanto.
- Num dado momento, minha então namorada começou a falar de um sonho que teve, onde estávamos com nossos filhos já crescidos, em uma casa de veraneio, netos no colo, e de repente essa casa desmoronava e ela desesperada e soterrada nos destroços gritava meu nome. Ela salientou que não gritava o nome dos filhos, dos netos, nem de nenhuma outra pessoa que não fosse o meu.
- Claro, eles nem existiam, portanto não tinham nomes.
- Mas ela sempre citava os nomes que gostaria de dar aos filhos. Num tom sarcástico, meio que pra me irritar, mas sabia que eram suas futuras e verdadeiras escolhas.
- Ah sim. Enfim, continue.
- E então ela começou a chorar, e a dizer milhares de coisas... Disse que me amaria por toda a eternidade, que não passaria um dia sequer longe de mim, que vislumbrava um futuro perfeito ao meu lado. Isso em tese deveria me fazer sentir o homem mais feliz do mundo. Mas foi exatamente o contrário. Me senti indefeso, pequeno e amarrado diante de um destino imutável. Por três meses foi assim, até que decidi tomar as rédeas da minha vida novamente. Terminei esse relacionamento com a convicção de que tinha reconquistado o direito de escolher o melhor caminho pra minha vida.
- Sei. Se fosse assim você não precisaria estar aqui nesse momento.
- Sim.
- O pior é a sensação de que tornei alguém que amava infeliz.
- Você não tem o direito de lamentar assim por suas escolhas equivocadas. Você seguiu algo que estava vivo dentro de você, num sufoco que te mataria caso você prendesse mais um pouco.
- Eu não soube direcionar minha vida direito... Eu errei quando escolhi o emprego que em pagou melhor, porém me manteve distante das pessoas que eu mais amava. E eu fugi de casa tantas vezes em desespero só pra agoniar meus pais pra que eles me notassem, me amassem um pouco mais. E eu queria tanto aquele cargo na gestão... E dei nomes, fiz conchavos, fui um mau-caráter. Eu nunca disse um “eu te amo” que fosse verdadeiro em toda a minha vida. Meu compromisso era com o que a vida podia me oferecer de imediato, na borda do prato.
- Sabe qual foi seu pior erro?
- Dentre tantos. Não.
- Você não se conhecia. Você é um estranho para si.
- Que coisa estúpida, eu sou isso que você está vendo, essa infelicidade em forma de gente.
- Não, eu não estou vendo isso. Estou vendo alguém que foi vencedor e perdedor na vida. Alguém que é Deus e Demônio, o covarde e o herói, o mendigo do banco de praça e o senhor que dita as regras do jogo. Estou vendo um santo e um pecador. Um ordinário mesquinho incapaz de amar, e o amor personificado.
- Não é nada disso, eu...
- Quantas vidas você acha que são diferentes da sua? Você acha que na Terra só existem acertadores? Homens de sensibilidade suprema? Acha realmente que todos as gargalhadas e lágrimas que você assiste de camarote são sinceras? Quem você acha que pode questionar suas razões? Somos todos movidos por carência e medo, vaidade e destreza, compaixão e egoísmo. A busca da felicidade é vazia, porque ninguém percebe que o que na realidade existe na vida não é felicidade, e sim momentos felizes. Um dia você, eu, e todo mundo vamos perceber isso, e vamos pagar de bom grado o preço que vier por seguir o que sentimos.
O diálogo acabou por aí. Foi interrompido por um choro que foi engolido por tantos anos, em tantas situações, que fica impossível mensurar o grau de alívio que ele proporcionou. Depois disso, ele pode perceber que a paz mora nas coisas que explodem no vento, que transparecem na escuridão, e que gritam em sintonia no vácuo eterno.

Um comentário:

Thiago Reimão disse...

Lindo e emocionante, cara.

Abraços,
Gnomo

Com o Santos, Onde e Como Ele Estiver
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