Por Vinícius Noronha.
Ela não sabia pra qual animalzinho queria dar seu carinho. Tinha o mesmo apego aos bichos que os pais, defensores incansáveis dos direitos dos animais, mas ainda não elegera aquele que a contagiaria nas manhãs, aquele com a qual ela dedicaria horas de seu tempo livre para brincadeiras desnorteantes e felicidade compartilhada gota por gota de suor. Já tentou cachorro, gato, papagaio, hamster, marreco, sapo e até uma lagartixa, e nada. Era bom, era legal, mas não era algo mais. Não era, por assim dizer, afeto de quem se espelha.
Os pais diziam “Não se preocupe, é melhor amar os animais em geral que amar a um só e ignorar os outros, e você tem tanto amor dentro desse seu coraçãozinho que pode distribuir pra todos os bichos do mundo”. Aos cinco anos, isso é reconfortante por cinco minutos. Pelas ocupações da causa ambiental dos pais, a menina muitas vezes ficava sozinha em casa, ela e uma boneca, ela e um pente, ela e a sua sombra.
Um amigo era necessário, um que fosse como nenhum outro que ela nunca tivera. Até que um dia ela estava sentada num canto da sala, pintando qualquer coisa com seu lápis de qualquer cor, e uma barata pousou em seu desenho. A menina olhou. A barata parou. A menina a cutucou levemente com o lápis e a barata deu uma coçada em suas antenas e alguns passos pra trás. Então, a menina começou a fazer um traço em frente à barata, que seguia obediente cada reta, cada curva, cada mudança de direção.
Em cinco anos, nunca riu tanto. Fez então um traço descontínuo pra ver o que acontecia. E o inseto resolveu ir embora, na procura incessante de um ralo para se esconder. A menina observou muito atentamente o gesto desesperado do inseto e foi atrás, criando com a mão uma barreira para a passagem da barata, que parou, subiu em sua mão e ali ficou. A menina trouxe o bichinho para perto do seu rosto, observado cada movimento de suas patinhas e antenas. Esboçou um “oi”, e acreditou ter sido respondida, pois a barata moveu suas antenas de uma forma diferente. Perguntou se ela queria ser sua amiga, e ela começou a andar pelo seu braço, chegando próximo ao cotovelo, já de ponta-cabeça conforme se aproximava dos ombros, e depois voltou.
Um contentamento tomou conta da garotinha solitária. Havia finalmente encontrado um animalzinho que fazia jus aos seus cuidados e devoção. Tinha certeza que aquele bichinho estranho seria a melhor companhia para as manhãs silenciosas, tardes longas e noites misteriosas. Tudo a partir dali ganharia novas cores, sons, sentidos. Teria e daria atenção. Teria amor sincero. Teria vida.
Ela deixou a baratinha num canto da sala junto com o papel de seus rabiscos e foi correndo para seu quarto encontrar algo com a qual poderia fazer uma casinha. Revirou caixas, fundos de armários e espalhou revistinhas por todo o quarto. Encontrou uma velha caixinha onde guardava os sapatinhos de suas bonecas preferidas. Jogou-as todas numa gaveta qualquer e correu toda animada para a sala reencontrar aquela que dali por diante seria sua amiga mais confidente e verdadeira.
No caminho, ouviu um grito apavorante, Reconheceu a voz de sua mãe, mas nunca tinha ouvido um grito assim antes, tanto que ficou amedrontada e diminuiu os passos de sua corrida. A seguir, ouviu alguns barulhos como se fossem palmadas. Nunca tinha levado uma palmada, mas sabia o som, pois quando fazia alguma desordem seu pai dava uma palmada com o chinelo na quina do sofá em tom de ameaça, e ela entendia o que isso significava e não repetia o erro. De repente, os sons cessaram, e ela apressou-se novamente. Entrou na sala, mas não viu a nova amiguinha lá. Nisso seu pai passou por ela com uma pá de lixo na mão, e a menina seguiu. E foi então que, no fim do percurso, ela viu a barata parada no chão, imóvel, de ponta-cabeça com as antenas quebradas. E seu pai a recolhendo com a pá de lixo e saindo de casa para jogar na lixeira da calçada.
E então, ela chorou. Um choro sentido, como nunca antes havia chorado. Não entendia porque seus pais haviam matado o animalzinho que havia escolhido para amar. Não entendia como um amor a uma determinada “coisa” podia ter exceções. Não entendia que o que havia despertado nela de repente não podia mais ser demonstrado a quem a transformou dessa maneira.
Ela não tinha ainda pura consciência disso, mas naquele dia em que se dispôs a compartilhar tudo que tinha de melhor dentro dela com a baratinha que pousou em seu desenho, a garotinha teve suas primeiras grande lições sobre a vida: Que a humanidade é cheia de entrelinhas, exceções, contudos e entretantos. Que o amor é transformador, pois nos faz entrar em contato com partes de nós que, até então, pareciam adormecidas, mas que esse sentimento maravilhoso muitas vezes é incompreendido, ou subestimado, e é infinito enquanto dura. E que definições de igualdade existem para que uns sejam mais iguais que os outros.
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