terça-feira, 14 de outubro de 2008

Mudaram as estações e nada mudou. (parte 2)

Por Sergio Faria.


Enquanto seguia ao seu lado trocando a maior idéia, olhava pras pessoas e ficava admirado de ninguém reconhecê-lo. Lembrei dos meus amigos: "Ah se me vissem agora!". Tenso o tempo todo, consegui representar pra ele uma calma que não existia. Assim ele foi se soltando e ficando mais simpático."Vocês ensaiam na Ilha do Governador, né?” Joguei essa sabendo que a banda ensaiava no mesmo bairro que Renato morava. E como ele deu a mão eu quis o resto! "Então? Como é que eu faço pra assistir um ensaio de vocês?" Ele veio com essa: "Ah não! É complicado! Eu tenho vergonha!". Achei graça "Ah! Pára! Que isso?!". Lembrei de um amigo do baterista da minha banda que era roadie da Legião e tinha prometido nos levar pra assistí-los. Resolvi simplicar e apelei: "Pô, pensei que era tranquilo porque um amigo meu, roadie de vocês ficou de descolar um ensaio pra gente ver...!" Aí ele me quebrou: "Qual o nome dele?" Como eu não sabia o nome da figura tive que explicar que na verdade o tal roadie era amigo do meu batera, blá, blá, blá. Acho que ele não acreditou e achou que eu estava jogando verde pra colher maduro. Depois de alguns quarteirões grudado nele, lembrei do encontro com a garota. Olhei no relógio e vi que me atrasaria muito se continuasse ali pentelhando o cara. Ele entrou numa banca de jornal e foi ali que, muito a contragosto, resolvi me despedir. "Foi um prazer ti conhecer pessoalmente. Sucesso!" Foram minhas últimas palavras ao apertar mais uma vez aquela mão que um dia escreveria Metal Contra As Nuvens, Só Por Hoje e Antes das Seis. Sai dali extasiado mas logo em seguida brochei: fiquei chateado por achar que poderia ter conseguido mais. Será que eu teria balançado o cara se ao invés de dizer de forma educada e simpática "sou fã da banda" eu dissesse eufórico e emocionado "sou seu fã desde sempre e você representa pra mim o que o Bob Dylan representa pra você" (ele era fanático por Bob Dylan). Será que seu eu estivesse todo largado, usando meu jeans surrado com aquele par de tênis adidas branco, velho e sujo mais a minha camiseta preta do Joy Division, não teria cativado o ex-punk? Mil coisas passaram pela minha cabeça nos dias que sucederam aquele encontro e até hoje me pergunto se tudo seria diferente se eu tivesse falado as coisas certas. É tão difícil acertar nessas circunstâncias. E ao descobrir que aquela revista Bizz que eu tinha acabado de comprar continha uma foto de página inteira dele com uma camisa branca, me arrependi de não ter pedido seu autográfo. O espaço na camisa era perfeito. Fazer o quê? Paciência. Alguns meses depois saiu o quarto disco (o primeiro em CD) que pela serenidade, clima religioso e letras sobre solidão, amizade e família me tocaram fundo. Logo em seguida, antes do final daquele ano, Renato sai do armário numa entrevista à mesma revista Bizz. Lembro como se fosse ontem: eu voltando pra casa dentro do ônibus surpreso e perplexo ao ler o trecho onde ele assumia sua condição de homossexual. Reli várias vezes pra ter certeza de que aquilo era mesmo a revelação. Minha admiração e meu respeito por ele não mudaram em nada. Fiz uma retrospectiva da sua obra e detectei em Soldados (tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto) e em Daniel Na cova Dos Leões (teu corpo é meu espelho e em ti navego) citações que remetem ao universo gay. Ao contrário do espalhafatoso Cazuza, outro monstro sagrado pra mim, Renato foi discreto e escondeu de todos sua opção sexual até quando quis. Tive a oportunidade e o privilégio de ver o lançamento do Quatro Estações nos shows que aconteceram em São Paulo, no Parque Antártica em 90 (que anos atrás viraram cd ). Fui nos dois dias mas fiquei com o gostinho de quero mais. No primeiro dia fiquei nas arquibancadas e não deu pra curtir tanto o show. Entretanto me emocionei com a queima de fogos no final dele ao som de Rapsody in Blue de George Gershwin. No segundo dia cheguei mais cedo e fui pra pista. Posicionado a alguns metros do palco pude constatar bem de perto a loucura que era assistir a Legião Urbana ao vivo. A energia da banda, a performance do Renato, a emoção do público. Até situações engraçadas como uma cena do Renato dando esporro no Fred Nascimento (músico de apoio na época e que hoje acompanha o Capital Inicial) que insistia em querer acompanhá-lo ao violão numa música improvisada pelo cantor à capela ficaram na minha memória. Renato falava: "Eu não tenho vergonha do que eu faço no banheiro nem na minha vida sexual!" ou "Não consigo cantar que o Brasil é o país do futuro com tudo que tá acontecendo nesse país!". Isso inflamava a galera. Prta mim tudo era perfeito, tudo era bonito, tudo era poesia. Este foi com certeza o show da minha vida. Eu já poderia morrer! Alguns anos depois, quando saiu o quinto trabalho do grupo, fui morar sozinho. Me apaixonei por uma garota que trabalhava comigo mas a moça não me quis. O disco, intitulado V, embalou minha solidão e Vento no Litoral era o tema daquela paixão não correspondida. Foi foda. Durante todos aqueles anos Renato foi também uma grande influência como cantor. Eu que gostava de cantar desde meus 4 anos passei a imitá-lo desde seus primeiros discos. Colocava um disco pra rolar e cantava junto todas as músicas, ora interpretando, ora berrando. Foi uma escola e tanto. Quando saiu O Descobrimento Do Brasil, eu já tinha desencanado um pouco de rock e começava a estudar música. Mas comprei o disco e achei maravilhoso o pop de bom gosto em letras profundamente pessoais. A década de 90 seguiu e eu me afastando cada vez mais do rock. Passei a ouvir e tocar gêneros como blues, choro, mpb, samba tradicional e jazz entre outros. Outra onda. E talvez esse distanciamento do grupo tenha amortecido um pouco o baque pela morte do Renato. Quando uma amiga me ligou ao meio-dia daquele 11 de outubro de 1996 me dando a notícia, inicialmente fiquei muito surpreso porque nem sabia que ele estava doente. Já não acompanhava mais de perto a carreira da banda. Passei o resto do dia agitado, gravando tudo que passava na TV. No noticiário seu médico dizia que ele descobrira ser portador do HIV em 89. Lembrei dele me dizendo "tô tendo problemas com as letras". Será? Depois que caiu a ficha de que Renato não estava mais entre nós, bateu a tristeza. Acho que se acontesse hoje eu certamente ficaria arrasado, mas naquele momento eu estava estranho e não chorei. Não sei explicar. Talvez a música instrumental que eu praticava naqueles dias tivesse me deixado frio, racional demais. Em meados de 2001 enxerguei minha realidade. Vi que aquela masturbação sonora não me levaria a lugar nenhum. Quando comecei a ouvir o disco ao vivo Como É Que Se Diz Eu Te Amo, me deu uma vontade enorme de fazer aquele tipo de som, naquele formato mais pop. Vi que o que eu queria mesmo era cativar as pessoas, passar coisas legais... Lembrei de uma frase do Renato que dizia que uma canção pop era uma vida inteira em três minutos. Resolvi largar todos os projetos com aquele "som cabeça" e investir numa idéia antiga: fazer canções com o coração. Era isso! Como o alquimista do Paulo Coelho, descobri que meu caminho na música era simples, sempre esteve do meu lado, nas minhas raízes. Me senti leve. Peguei o meu vinil do Quatro Estações que depois de alguns anos guardado e esquecido, voltou a rodar na minha vitrola. Que sensação maravilhosa! Há tempos não me sentia tão bem apenas por ouvir música. Quando a faixa que encerra o disco Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar começou, não consegui conter as lágrimas. Foi um choro inexplicável, um choro bom, um choro de felicidade. Como num reencontro com um velho amigo. Voltei a ouvir rock e a escrever letras. E talvez tentando me redimir do meu breve abandono ao poeta e tomado de uma nostalgia num momento em que me sentia meio depressivo e muito emotivo, tentei registrar nessas "poucas palavras" o que representou pra mim esse ser humano chamado Renato Russo. Um pouco do que sou e penso devo à sua existência, às suas letras universais, à sua música, enfim, à sua obra. Tento seguir a sua cartilha sempre que posso e consigo. Sendo assim, encerro esse texto compartilhando com todos uma pequena frase que precedia os autógrafos do poeta: "Força Sempre".

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