Por Vinícius Noronha.
Eu tinha 8 anos quando, pela primeira vez, me perguntei quem eu era. Até aquele dia eu era Vinícius, pois era por essa palavra que me chamavam ou diziam algo relacionado a mim. Acontece que, na mesma turma que eu, tinha um outro Vinícius. E ele não tinha nada a ver comigo: era japonês, usava óculos, gostava de matemática e o pai tinha um passat. Mesmo assim, o chamavam do mesmo jeito. Pensei que então eu não poderia ser, simplesmente, Vinícius. Tinha que ser mais coisas, ou pelo menos, ir além disso.
Pra entender quem eu era, eu tentei começar na busca por compreender quem as outras pessoas eram. Bom, minha mãe era minha mãe, meu pai era meu pai e minha irmã, minha irmã. Parecia idiotamente óbvio, mas acontece que, ao prestar atenção, vi que pra grande maioria das pessoas minha mãe não era minha mãe. Pra alguns era professora, pra outras, chefe, pra algumas cliente, pra outras tantas, a "Dona Marlei", pra mais algumas, a "Nenem"... Ela era tantas ao mesmo tempo que chegou uma hora que eu me cansei de contar. Voltei o pensamento pra mim e vi que eu também não era só "Vinícius". Ás vezes eu podia ser "aquele menino", "aluno", "meu sobrinho preferido", "o cara mais chato da sala", "o moleque que cata bem no gol".
Também desisti de contar. Percebi o quanto é inútil querer definição do que eu era, porque eu podia ser tantos ao mesmo tempo que não havia nenhuma maneira de somar. Foi quando me dei conta de que, nessa condição, eu poderia ser qualquer coisa que quisesse. Isso me animou tanto, me deixou tão cheio de expectativas, que de fato acreditei, por alguns momentos, ser praticamente um super-herói. Mais que super-herói, afinal eu podia ser super-herói, mas também muitos outros.
Com toda a pose acumulada pelas teorias formuladas, acordei no dia seguinte resolvido a explorar todas essas possibilidades infinitas. Minha pompa era tanta que me esqueci, no meio disso tudo, que se eu podia ser tudo, todo mundo também podia. Só fui me dar conta disso quando cheguei ao colégio e observei, de longe, os outros meninos que se despediam de suas mães para ir pra aula, e depois seguiam em turma acompanhados, cada um se chamando de um apelido completamente diferente de seus nomes originais. Essa infinitude não era particular, e sim uma condição humana. Essa revelação me deixou transtornado, assustado, e confesso que um pouco triste também. Queria tanto ser esse ser único e mágico que pode ser algo hoje e outro alguém completamente diferente 5 segundos depois... Fui pra casa um tanto perdido e descontente.
E então, a última grande descoberta sobre quem eu era me veio dar um murro violento na cara, que eu tive que aguentar firme e assimilar pra toda a minha vida. Meu pai foi ter uma conversa com os anjos, e eu perdi a minha principal referência pra qualquer ponto de interrogação. Eu não percebi na hora, mas com ele, foi-se uma parte do meu mundo. Foi-se um pouco da crença de que as coisas sempre estariam bem, e foi-se, naquele momento, o sentido de entender quem eu era, que deu lugar a perguntas sobre o porquê das coisas acontecerem do jeito que acontecem, se somos predestinados a determinados desvios. Se tudo é uma grande armadilha do destino, ou se, simplesmente, os fatos ocorrem e estamos suscetíveis, a todo instante, a nos encontrar em condições as quais nem imaginaríamos que fossemos deparar.
Os dias correram, semanas até, e de repente a pergunta sobre quem eu era retornou. Naquele momento, sentia necessidade de me entender pra saber como me portar diante de qualquer situação, pro caso do rodamoinho do acaso passar de novo pelo meu caminho, transformando tudo que me rodeava em devaneios inesperados. Mas quando novamente me peguei intrigado com esta questão, imediatamente me lembrei do meu pai, e vi que agora ele não era mais chamado. Não era mais pai, Seu Antônio, doutor, Toninho, e tantas outras identificações que ele tinha, que a vida permitiu que ele tivesse, e que parecia roubar dele após sua partida. Era tão reconhecido pelas palavras, conceitos, discursos, e hoje seus vastos nomes se perdiam na poeira do tempo pra fatalmente sumirem no mais completo esquecimento.
Tive raiva. Chorei. Bati o pé. Teimei que a vida era uma merda, que nada prestava, que não importava ser zilhares de coisas importantes se tudo um dia acabasse daquela maneira injusta. Não podia aceitar que o curso da existência tivesse aquela mecânica que me parecia tão tirana. Decidi que não queria ser mais nada. Queria ser ninguém, um ninguém sem nome, sem função, sem importância. Ao menos, me livrava da decepção de saber que, no fim, todos os "eus" acumulados de nada adiantariam pra que eu tivesse me tornado alguém. Era o que eu achava, e com essa convicção, ignorei todas aquela avalanche de possibilidades de tempos atrás.
Então minha mãe, ao ver que eu não respondia quando ela chamava meu nome, veio ver o que estava acontecendo comigo. Contei tudo isso pra ela. Bom, acho que não dessa maneira que estou contando agora, mas deixei ela saber, de alguma maneira, o que estava acontecendo. Ela me disse que não importava que meu pai não estivesse presente, ele nunca deixaria de ser o que sempre foi em nossas lembranças e recordações, porque essa semente ninguém consegue tirar do coração da gente. Pediu pra que eu não me preocupasse, porque meu pai nunca deixaria de ser meu pai, assim como o Antônio, o grande amor da vida dela, foi, é e sempre será o Antônio. E em todo mundo que teve o privilégio desse convívio, e cuja presença dele foi, de alguma forma, significante, ele permaneceria o que sempre foi. Eternamente.
Eu não sei bem dizer o que senti depois de ouvir tudo aquilo. Fiquei confuso, porém sereno. Aquilo era desesperador e reconfortante ao mesmo tempo. Fluia, simples assim. Meu pai já não era nada, todas aquelas possibilidades tão citadas e impressionáveis se esvaneceram no decorrer da vida, mas continuavam dentro quem teve a chance de receber seu valor. Ao fim disso tudo, depois dessa experiência e de todo o tempo que passou, a minha conclusão é de que não somos nada, e ao mesmo tempo, somos infinitos. Com tantos recursos pra ser o que bem entendermos, terminamos os nossos dias como se fossemos um sonho passageiro, uma lembrança vaga, um lapso. Talvez seja melhor assim, podemos nos livrar da responsabilidade de ser Deus. Hoje, ainda cheio de incertezas, encontro abrigo na convicção de me manter eterno, independente das definições ou do nome subsequente, nos corações e mentes daqueles que verdadeiramente amo e prezo. Por enquanto, esse infinitude tão sagrada e tão cheia de limites me é suficiente.