Por Adriana Hernandes.
Chego em casa, descalço meus sapatos, janto qualquer coisa, acendo meu cigarro e me viro para janela. Ah, mas quem pensou que eu estava sozinho se enganou, Coltrane aparece sutilmente na vitrola pra me dar aquela força.
Há quem goste virar os olhos pra uma caixa que vende ilusão barata regada de imagens e sons intermitentes. Eu não! Eu prefiro observar toda essa fantasia real que paira em prédios vizinhos, calçadas e becos. Prefiro essa visão panorâmica e tridimensional, ao vivo e a cores nada opacas. Sem cortes, sem intervalos, com alguns fantasmas, concordo, mas sem nenhum locutor entendido de nada a bradar ruídos vazios aos meus ouvidos.
Encostado no parapeito vejo vidas que vêm e vão em cima de pernas, dentro de carros, à pedaladas. Se sou curioso, enxerido, abelhudo? Eu nunca afirmei o contrário.
Agora mesmo dois amigos passam pela rua. Um é alto, robusto, voz grave, muito bem apanhado, por sinal. Mas pelo andar molengo e a cara esparramada percebe-se que esse é só mais um em meio a tantos. O outro não, mesmo mirrado, caído e deixando se ofuscar pela grandeza oca do colega, mostra-se muito maior internamente só pelo fato de preferir ouvir a falar. Escolha sábia.
Logo adiante, naquela esquina, uma moça espera ansiosamente seu príncipe encantado... O terceiro dessa noite.
Com certeza essa jovem seria uma ótima atriz, merecedora de todos os prêmios. Esconder a indiferença sentimental e o asco gélido atrás de lábios vermelhos, sorrisos, gemidos, suores e sussurros de frases decoradas realmente deve ser muito difícil. Aliás, essa vida é tudo, menos fácil.
No prédio em frente encontra-se uma das sessões mais curiosas: Uma senhora reza um terço ferozmente com um gato branco em seu colo, o que gera um bonito contraste com seu vestido de luto.
Exatamente ás 22 horas sua campainha toca. Um homem, baixo, gordo, pescoço curto, entra. E as últimas coisa que vejo são: A velha escondendo um retrato (do falecido, suponho), as cortinas da sala se fechando e a silhueta de dois corpos já cansados a riscar o chão num baile eterno, como se as décadas jamais tivessem passado. Ah, essa juventude.
Dois andares acima uma mulher chora, histericamente, ao telefone. Passa a mão pelos cabelos, seca as lágrimas na manga do casaco, senta, levanta, anda, pára. Não adianta minha cara, ele não vem hoje.
Mas não se preocupe, amanhã ele aparece com qualquer bugiganga atada em um laço dourado e aquela cara de Basset abandonado que só ele sabe fazer. E você irá perdoá-lo com o maior sorriso do mundo... de novo. E assim prosseguirá sua romaria, você sempre sendo dele e ele nunca sendo seu.
Talvez, no meio desses muitos olhos que enxergam mas não vêem, exista alguém a me observar também. Talvez, alguém de alguma janela que minhas vistas ainda não alcançaram esteja, nesse momento, tentando decifrar o que um homem, sem camisa, com um cigarro na mão, ouvindo um vinil velho faz debruçado na janela agindo como o farol de um cais, tentando, silenciosa e inutilmente, guiar os navios que arriscam cruzar a sua frente.
Talvez, esse alguém imagine que também está sendo observado por algum estranho que tenta adivinhar o seu código mais secreto. Talvez, estejamos todos na ânsia de ver além de só enxergar, mesmo que a grande maioria morra sem perceber isso a tempo. Talvez.
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
Talvez.
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2 comentários:
Driquitcha não conhecia esse seu lado escritora.......adorei!!!
te adoro!!! bjão!!
Muito legal! =)
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