sábado, 6 de setembro de 2008

Peter Pan.

Por Felipe Grilo.

Meu nome é N. e hoje, dia 6 de setembro de 2008, descobri que sou uma náufraga em mim mesmo.

Escrevo esta carta isolada em uma ilha de consciência, banhada pelas águas de uma alma que nunca foi minha. Será como nos filmes de piratas: jogarei a garrafa com o papel ao mar e adeus. Quem lerá, não sei. Minha falsa esperança é fazer eu mesma ler, quem sabe em um desabafo qualquer de diário, e despertar a atenção daqueles olhos físicos para o lado de dentro, fazendo me encontrar tão sozinha, tão triste, tão criança, tão fetalmente sem formação.

Escrevo, como um pedido de socorro em letras pequenas, sobre esta urgência, sobre esta morte iminente diante do meu auto-definhamento. Nunca pareci tão inóspita como sou. Mas só agora percebo. E me calei até hoje. Pareço tão inalcançável...

Por fora, uma garota mimada e arrogante, apesar de manter uma aura tenra e infantil. Tenho gestos duros para uma garota. Não tenho muitos amigos, apenas uma família desestruturada e uma mãe que, por insistência, coloco em um altar de santa. Assim ela é minha salvaguarda, é meu consolo, minha razão de viver e a pessoa que mais amo no mundo. Talvez a única. Mais do que a mim mesma.

Não amo homens, nunca amei nem amarei. Nem sou lésbica. Apenas não confio neles, como não confio em meu pai. Apenas colegas, cumprimento todos eles com apertos de mão, mantendo distância segura de carícias e afetos. Já fui amada. Preferi a distância total e absoluta, apesar de dizer sentir saudades suas. Como os conflitos eram muitos, sem perceber, preferi a sua morte. Preferi que a sua vaga lembrança viajasse neste mar de restos imortais dentro de mim. Ele sobreviveu, está à espreita, e quer se vingar.

De forma contraditória a este lamaçal de purezas que fiz questão de entulhar, também faço questão de me manter longe das impurezas do mundo que me cerca pelo lado de fora. Sou muito criança, apesar de atingir a maioridade. Acredito em anjinhos e leio Pequeno Príncipe, mas meu livro preferido é Orgulho e Preconceito. Sou racional, quase formal, e não tenho coragem de olhar nos olhos de quem me vê. Sou dissimulada: respondo a estímulos sem me consultar. Sinto que uma estranha ensaboa meu corpo no chuveiro, sem o menor prazer em acariciar minha pele. Ando como um animal de tetas. Desconversei quando me perguntaram se era feliz.

Como tenho muito pouco do que viver corrôo, canibalisticamente, cada pedacinho das minhas mais ínfimas indagações. Aqui dentro absorvo uma atmosfera venenosa de ilusões mentais, sem sentimentos e puramente fictícias, criadas por uma lógica desordenada como o vento e construída ao longo da vida para me proteger de como ela é: meteoros de homens e mulheres em decomposição, banalidades flamejantes e estímulos irracionais como a vontade de ter um orgasmo. Assim vejo fábulas, príncipes encantados e finais felizes, ainda que trágicos, onde quem morre sou eu. Por fora, acredito poder ajudar as pessoas com minha altivez de fada madrinha, enquanto por dentro, preciso de ajuda para sair de mim.

Como naufraguei? Os medos contraditórios me guiaram até aqui: tenho medo de perder as pessoas que mais amo no mundo, mas não sei amar nem a mim mesma. Tenho medo de ficar sozinha, mas é como fiquei. Tenho medo que me enganem, e me enganei. Tenho medo do abandono, e me abandonei.

E então vieram as aparências me assombrar em meu próprio navio-fantasma: mostro ser dura, firme e forte em minha casca, mas tenho medo de me abrir aos sentimentos e de flutuar – pois afundada já estou. Tenho medo de aparentar fraqueza, e é mais do que evidente que sou.

E então, as palavras derradeiras, que me apunhalaram a mando do meu segundo maior algoz:

- N., você tem medo de ter medo.

Sim, tenho medo de ter medo. Tenho medo de ter medo de ter medo. Tenho medo de ter medo de ter medo de ter medo. E assim, como num jogo de espelhos entre o meu mar e o céu de ilusões, vivo em um mundo paralelo onde não posso crescer, perco em instantes e deixo fugir, em múltiplos fragmentos, a sombra efêmera do meu eu, sem mim.

***

Texto dedicado a um amigo.

8 comentários:

Catarina Herrera disse...

UAAAAU Grilinho!! como disse no msn enquanto lia seu texto, houve várias palavras que me tocaram, vários momentos em que pensei que fosse eu, essa tal de N. Lembra quando a gente conversou e eu disse que não sabia porque era arrogante? Eu ainda não sei, mas esse texto abriu uma pequenina fresta pra verdade entrar. Talvez eu seja igual à N. Talvez eu também tenha medo de ter medo. Medo de saber a verdade. De qualquer modo, meus parabéns de novo. A cada semana umt exto mais maravilhoso que o outro. Carrilho ficaria orgulhoso! HAUHAUAHUAHUAH

Anônimo disse...

Você sabe né? escreve pra caralho. Muito interessante esse texto. Gostei do blog, voltarei mais vezes...e também, por concidência , no momento em que retomo o meu blog, super abandonado...
Prabens grilooo!

Anônimo disse...

essa anonimo sou eu, Joyce Arruda
ahahahahha, que com muita ´pressa enfiou os pés pelas mãos

Fernando A. Medeiros disse...

Cara! Não sei por onde começo. É um texto sem sombra de dúvidas brilhante, um exemplo perfeito de personagens em 'auto-procura', se é que você me entende. Deslocando autor do personagem, acho que você chutou o 'pau-da-barraca' e fez uma interessantíssima vendetta poética. Chocante, cheio de reflexões existencialistas, ainda tem muito daquilo que você abordou no Homo Socialis minimus.

Adriana disse...

Tudo o que tinha que ser comentado já foi comentado. Só me resta dar um parabéns mais do que merecido.

Grilo, o dia que você resolver dar aulas de como escrever assim, me avise, tá?

Grilo disse...

Brigado, gente =) Brigadão mesmo =D

* Homo Socialis Minimus: pra quem estiver boiando, é uma sequência de contos que fiz sobre relacionamento, mas não publico (só peço opinião, como a do Figura aí em cima).

Dri, você já escreve bem pra caralho! e além disso eu não teria como ensinar: não é possível ensinar a amar. Mas isso você já sabe =)

Lipe disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lipe disse...

muito bom... conheço alguém que se encaixa perfeitamente a essa personagem...