quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Ainda Lembro.

Por Adriana Hernandes.

Ainda lembro da sua primeira carta. Você começava se desculpando pelos erros e a falta de tino com as palavras. Mas todos aqueles anseios sobrepostos no papel da minha cor favorita eram tão maiores, qualquer “L” ou “S” fora do lugar não faria diferença alguma. Que minha antiga professora não me ouça, mas sabe que eu até achava um certo charme?

Ainda lembro dos nossos planos espalhafatosos para fugas arrojadas. Era tudo muito fácil. Pegaríamos uma bicicleta e iríamos pra praia. Alugaríamos um conversível e escaparíamos pro Uruguai. Construiríamos um foguete e partiríamos rumo à Lua! “Lua não, é muito perto. Vamos pra Saturno, é bem mais legal”. Eu me perguntava o que faríamos no Uruguai ou em Saturno, mas com o destino traçado, o resto era detalhe.

Lembro das batalhas para impormos nossas preferências, tudo extremamente importante. Que começasse a luta:

1º round: Pipoca vs. Biscoito de polvilho. Nem te dava chance, já ia respondendo: “Pipoca combina com todos os temperos, fica bom com tudo. Biscoito de polvilho tem gosto de ar, gosto de coisa nenhuma”. Você ficava sem ter o que dizer, então era ponto pra mim.

2º round: Queimada vs. Futebol. Você nem me dava chance, já ia respondendo: “Queimada não é esporte”. Eu não desistia e retrucava: “A gente joga assim mesmo”. Mas perdia com sua tréplica: “Já viu jogo de queimada na TV? Conhece algum time? Me diz o nome de um jogador? Viu, só? Queimada é brincadeira, não esporte”. Eu ficava sem ter o que dizer, franzia a testa, cerrava os olhos, juntava os lábios, mas dava o braço a torcer, então era ponto pra você. Engraçado que nós nunca tentamos o 3° round, era bem melhor quando os dois saiam vitoriosos.

Lembro da tua cara tediosa em frente aos exercícios de sintaxe. Irritava-se com as orações, elas eram muito subordinadas. E odiava procurar o tal sujeito, mesmo o coitado tendo tantos predicados.

Mas eu também lembro das tuas tentativas frustradas de me encaminhar pelos trilhos nebulosos da Química. Você aparecia com todos os elementos necessários, do metal mais vil ao gás mais nobre. Não adiantou de nada, da minha parte nunca houve reação.

E das buscas por constelações, lembra? Você me mostrava Centauro, eu lhe indicava o Cruzeiro do Sul. Mas a verdade é que nós não entendíamos absolutamente nada disso, e só decoramos esses nomes porque vimos em algum livro de ciências enquanto esboçávamos nossa rota até Saturno. O que não tirava a graça de ficarmos horas e mais horas olhando para o céu, apontando pro vazio e fazendo desejos pra qualquer estrela que brilhasse mais forte.

Lembro quando nos fitávamos até um dos dois desistir e piscar, impressionante como eu sempre ganhava. Também, nunca cansei de te olhar nos olhos, tão apaziguadores. Sempre foram meu oceano Pacífico em momentos de abalos terrestres.

Se eu puxar bem pela memória, sei que vou me lembrar de muito mais. Mas me conforta tanto saber que não preciso lembrar dos teus olhos, é só virar pro lado e eles estão lá, juntos de você, sempre dispostos a me resgatar das tormentas.

3 comentários:

Grilo disse...

Lindo, lindo, lindo!

Daniel Ramos disse...

Excelente o texto. Fantástico

Vini Noronha disse...

"_______" (ctrl+c ctrl+v no seu comentário no meu post aqui).

Lindo demais mesmo. Qualquer comentário não fará jus...