sábado, 23 de agosto de 2008

Misticismo.

Por Felipe Grilo

História real que aconteceu nesta quarta-feira em minha casa, e que me fez pensar. Leiam e tirem suas próprias conclusões.

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Toca o telefone. Acusa no "detecta" do aparelho que é a minha vó. Não atendo, nem faço questão (por motivos que não vêm ao caso, não gosto dela). Deixo tocar, tocar, tocar, até minha mãe voltar do supermercado com uma sacola nos braços e abrir a porta do apartamento. Digo: "é a sua mãe", para que ela venha correndo atender.

Durante a conversa minha mãe mostrava vontade de rir, mas segurou até colocar o fone no gancho. Ao colocar, percebendo as risadas contidas, perguntei o que ocorreu. Então ela começa a contar:

"Filho, ouve só essa: a vizinha da minha mãe acordou com uns vômitos, umas dores, e parece que começou a gritar, a espernear, até a jogar panela pro alto e falar um monte. Sua avó fechou todos os trincos da casa, se trancou no quarto pra rezar, mas antes me ligou pra desabafar comigo e me falar que a família disse que ela tá com espírito! Chamaram até pastor pra exorcizar. Daqui a pouco ela me conta mais."

Enquanto minha mãe falava e ria, a alça da sacola de plástico que ela carregava vinha esbarrando no aquário do McFish - meu peixe betta de estimação, que mora nas redondezas entre o telefone e o meu computador. Notei que o bichinho tava em pânico por causa da sacola se mexendo!

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McFish, meu companheiro de sedentarismo, é um cara meio alheio a tudo que o cerca. Também pudera: o mundo dele é formado pelos poucos centímetros cúbicos de água por onde nada, as pedrinhas brancas do aquário e a plantinha de plástico. Ao redor do vidro onde costuma bater com seu focinho, existem minha pilha de CDs e cadernos, uma corneta vermelha, Arioswaldo (minha noz também de estimação, na qual desenhei uma carinha de mal) e uma aranha de plástico, além da parede branca, um mural também branco e uma pequena bolsa, da qual McFish tem um pouco de ciúmes e reage com muxoxos quando penso em tirá-la de perto dele.

Convenhamos: se você fosse um peixe, sentiria tédio total e absoluto. McFish chega a bocejar. Por isso, desconfio que ele sempre nada olhando pro lado esquerdo para se distrair, porque nele existe o maior número de bugigangas fora do vidro. Também desconfio que ele "sabe" que é um peixe e tem consciência de que aquele outro peixe, igualzinho a ele, é um reflexo. Tudo isso sem saber o que é um aquário, e sem imaginar que o vidro é impermeável a coisas sólidas.

Teorias que explicam duas coisas: o seu tédio acentuado por conhecer sua existência, suas privações e não poder fazer nada a respeito – eu até gostaria que ele pensasse ser um pássaro! – e o fato de ter tido quase um infarto, tadinho, ao ver a alça da sacola esbarrando no vidro, tudo com direito a ficar no lado extremo oposto do recipiente pra "aquilo branco e brilhante" não lhe tocar, e a dar bicadinhas na margem da água para compensar sua deficiência respiratória piorada pelo susto.

Sei lá. Só sei que, de fato, ele ficou uns quinze minutos com medo até do meu dedo, ao tentar me aproximar para ver se conseguia acalmá-lo. Mas não: dava a ré com as barbatanas e fazia aquela cara de "nããããão!" que só ele sabe fazer, com suas bochechas grandes e sua boca bicuda. Depois passou.

***

Minha avó voltou a ligar, como combinado, para minha mãe atender e me contar o resto da história. O tormento por lá já tinha passado e a cena, que remontava aos períodos medievais, sucumbiu diante da farsa da mente. O pastor benzeu a infeliz e a levou ao hospital, pois era vítima não de um ente do mal, mas de uma cólica no fígado.

2 comentários:

Unknown disse...

E McFish com todo seu tédio e pavor tornou-se estrela principal de um texto sensacional do Grilo.
Só não sei definir bem se o texto é ainda mais sensacional por ser real.
É um mundo enlouquecido esse mesmo.

Adriana disse...

Dó do McFish, realmente não é legal ver desconhecidos invadindo seu espaço, sacola inconveniente, credo.

Eu já nem sei definir mais os textos do Grilo, a mente desse cara é um poço sem fundo...Ainda bem, nós que ganhamos com isso.