quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Pré-texto.
Por Cristiane Senn.
Mero pretexto pra dor-de-cotovelo.
Porque não há dor que não se faça pretexto pra folha em branco.
Pré-conceito com pré-texto de pré-escola. Tudo ao p(r)é-da-letra. Coisa que não se entende, porque ficam procurando pêlo em ovo de codorna – e sem lupa! – em vez de depilar tudo por pré-caução.
Fora isso, ela subia a ladeira apressada todo dia. Apressada ela, não a ladeira. Claro que não morava na ladeira. Morava no mundo, no Brasil, neste Brasil varonil, que não ousava cantar com sua voz enternecida. Morava no cinza, na fumaça cinza, na buzina cinza, no mar de gente cinza atravessando a rua no vermelho. Mar poluído, nunca tinha visto uma vida ali. Perguntavam aonde ia a princesa com tanta pressa. Ia tirar o pai da forca e a barriga da miséria. Mas nunca que iam acreditar, então nem respondia os pedreiros cheios de amor pra dar. Olhava pra frente sempre, sem saber muito pra onde olhar. Escutando um desses chicos no seu ipod de mentira. E nem sabia que diferença tinha a mentira da verdade, pois quando é que se pode averiguar?
No caminho, a loja de eletrodomésticos tocava “we’ll never gonna survive unless we get a little crazy...”. Mas ela nem entendia inglês, então continuava olhando pra frente, concentrada nesse noel rosa que a Marta gravou pra mim aqui.
Não queria nem choro nem vela nem fita amarela, feinha essa cor, né. Diz que era “feiosinha” o certo. Mas que “feiosinha” era mais feio que “feinha”, isso era. Mais feio que a cor amarela. Marta era inteligente e tinha ensinado muita coisa pra ela, mas também era chata porque corrigia tudo o que ela escrevia. Tudo. O texto nem parecia mais o dela, ficava texto da Marta. Raiva.
Ia-se indo pra biblioteca quando desmaiou. A mochila que caiu sumiu com o pivete que “deixa que eu te ajudo tia” e zup! ou vup! ou pluft! ou sei lá. A senhora que passou do lado fez uma oração, mas nem encostou nela, nem olhou pra ela, talvez nem orasse pra ela, talvez fosse uma praga, talvez nem fosse nada. A cabeça doía e ninguém. Ninguém. Daí que veio aquela moça que disse “ai, você é aquela que mora com a Marta, né?”. Ai, que ter de lembrar da Marta com a cabeça doendo é foda. A moça se abaixou com a cabeleira enorme que ela quase engoliu. 7 segundos de cheiro de shampoo ruim até levantar. Sentou na cadeira do guardinha da biblioteca, que trouxe um copo d’água. Já a conhecia de tanto que ela vinha ali, mas ela mesma nunca tinha visto bigodinho mais ridículo e nojento, tomara que não seja copo dele. E a moça: “Mas o que que foi acontecer, quer que chame um médico, alguém? Mas que cabeça a minha! Vou chamar a Marta!”. E ela: “Mas que cabeça a minha, como dói essa merda.” Isso só pensou (capaz que ia falar), enquanto mexia em sinal negativo. Deusmelivre da Marta agora. Já não basta ficar corrigindo os textos, querer corrigir a saúde. Bebia, mesmo e daí? Sabia que não podia, mas e daí? Daí que desmaiava assim, na frente da biblioteca, na saída do boteco, dentro da livraria, na seção de auto-ajuda. Lembrou de quando vomitou em cima do “Como ser feliz”.
De noite a Marta perguntou do desmaio. Ela fez uma cara de nem-foi-nada, não tinha comido e tal e passou logo. “E sabe que andei lendo aquele seu último texto da dor-de-cotovelo e não entendi. Você não escreve bem o português. Já disse que posso te dar umas aulas. Já corrigi ele. Mudei umas palavras no final. Não é “feinha”, é “feiosinha”, já te disse isso duzentas vezes”.
É, a Marta já tinha dito tudo aquilo e muito mais umas duzentas vezes, até mais. Quanto tempo será que fazia não dizia coisa nova? Um dia ia mandar calar a boca, mas por enquanto era a irmã mais velha que trabalhava. Num escritoriozinho de merda. E porque namorava o filho do patrão. Empreguinho de merda, namoradinho de merda, patrãozinho de merda, gramatiquinha de merda. Era assim que ela via a Marta. E a Marta via ela como? Imatura, preguiçosa, ruinzinha de português, nunca-ia-entrar-na-cabeça-que-crase-era-artigo-mais-preposição, texto de pré-escola. Mas era dor-de-cotovelo, disso tinha certeza. Quem nunca ia entender nada era a Marta. Não tinha criatividade pra nada, nem pra escrever, nem pra reclamar, nem pra arrumar namorado. Acho que nem pra respirar. Me deixa escrever em paz, porra! Mas isso só pensou. Capaz que ia falar. Joana era muda.
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3 comentários:
A Cristiane tem um jeito de escrever tão legal, parece uma conversa, um papo cara a cara.
Adorei!!
E eu tô cantando "we’ll never gonna survive unless we get a little crazy...” ate agora, hahaha.
Caraaaaaaaaca: dinâmico, interativo, sem-noção, alegórico e sem perder aquele gostinho dramático de de "puuutz!" no final.
Beem legal, Cri!!!
cara, esse texto ficou muito bom. muito bom mesmo. você escreve bem pra caralho.
eu adoro que ele tem um ritmo acelerado, o tipo de leitura que eu mais gosto em geral.
foda. :)
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