sábado, 9 de agosto de 2008

Retrato falado.


De Felipe Grilo.

Eis que alguém resolve queimar mais um indigente para dar brilho à noite sem estrelas. Clima de suspense e tensão na delegacia que vai apurar o caso. O culpado escapou. O mendigo, muito bem passado com essa história toda, estava dormindo bêbado antes do ato cruel e agora está em estado grave na UTI, vítima de queimaduras de terceiro grau. Antes de morrer, disse ao delegado que:

- Eu só vi o vulto de um cara magrelo e cabeçudo saindo da caixa e vindo todo aceso pra cima de mim. Daí ele caiu pra cima e.

O mendigo morreu. O delegado disse para a imprensa que iria cair em cima dos suspeitos. A imprensa disse para a opinião pública que iria cair em cima do delegado enquanto ele não caísse em cima dos suspeitos. A opinião pública disse que ia cair em cima do legislativo com suas passeatas. Daí você, caro colega, já pode ver o montinho da polêmica no final do horizonte para mostrar ao seu netinho, e contar para ele esta história que agora sou eu vou lhe contar.

Saiu tudo numa revista de circulação gratuita na região, mas como os fatos foram escassos e a notícia, uma notinha, todo mundo acompanhava a seção de cartas com mais afinco para entender o assunto que comoveu o país.

“Essa onda de violência precisa parar. O depoimento do indigente diz tudo o que a polícia precisa saber: foi um homem magro e cabeludo. Esperamos que o delegado consiga encontrá-lo entre vários suspeitos e aplicar a pena justa para crime tão hediondo.” (Zilda, dona-de-casa, por telefone).

“O cara de black power merece ser queimado é nas pregas!”(Tonhão, açougueiro, por berro na porta da redação).

“Nossos sentinelas aqui da comunidade viram um indivíduo andando com uma perua em alta velocidade por aí. Já que a polícia não faz nada, eles mesmos vão fazer esse maluco dormir apertadinho numa caixinha de madeira de verdade.” (M.Z.C., civil, por recado embaixo do travesseiro do editor).

“Claro que “dormir apertadinho na caixinha de madeira” foi um código dado pela milícia, assim como “fazer seu lanchinho” é o mesmo que esquartejar alguém e esconder o presunto picadinho em algum colchão. Analisando a mensagem: quem dorme na caixa, ou é sapato, ou é boneca. E boneca pra mim é travesti. A imprensa não diz, mas parto da teoria que os grupos minoritários transexuais, tão discriminados e desrespeitados, estão defendendo seus direitos na base da porrada.” (Pimentel, vigilante de rua, por rádio amador).

“Retiro o que disse: a perua NÃO merece levar queimada nas pregas!” (Tonhão, açougueiro, rindo na porta da redação).

“Durmir numa casa de madeira compensada de um único cômodo deve ser uma difícil situação socioeconômica, diria até desumana. A violência está se tornando não apenas banalizada, mas comum, utilizada como método de reagir a um sistema que não prioriza os direitos humanos e civis. Precisamos dar condições! Precisamos reavaliar!” (Zulmira, assistente social, por carta).

“Eu sabia que tinha favelado no meio. E mona, ainda por cima. E não deve ser uma só, não.” (Angélica, travesti, por SMS ao nosso editor).

“As habitações conjuntas são comuns na região. De fato, os transexuais aqui são praticamente tudo farinha no mesmo barraco.” (Solange, psicóloga, por e-mail).

“Esperamos que apertem o cerco contra os principais suspeitos, que o transexual e sua gangue sejam detidos, que esperem seu julgamento longe da sociedade e, caso se confirmem as denúncias do esconderijo de cocaína e outras drogas, que o recinto seja estourado.” (S.C, jornalista, por e-mail).

“Será que voltamos à época de Madame Satã? Conheceremos o ídolo do culto à violência de nossos tempos?” (Donizete Pinto Soares, sociólogo, por e-mail).

Enfim, suspeitos nunca foram detidos, o culpado nunca foi encontrado e a pauta da revista deu lugar a qualquer outra chacina. As chamas dos fatos jornalísticos se apagaram na pontinha do iceberg de infindáveis versões. Mas, no cume de uma montanha de lixo, longe da vista de todos, eis que aparece o real assassino descrito pelo falecido mendigo:

Moral da história: não forme sua opinião somente com base na opinião alheia. Procure se informar.

2 comentários:

Adriana disse...

Em alguns trechos lembrei daquele ditado popular: "Quem conta um conto aumenta um ponto".

Genial, Grilo, de verdade. Meus parabéns!!

Grilo disse...

Nossa, Dri, essa me fez corar >_<
Muito obrigado!!