terça-feira, 5 de agosto de 2008

Conto das manhãs azuis.

De Vinícius Noronha.

Éramos quatro, e quase sempre um. Todas as manhãs eram azuis conforme nossos olhos confrontavam as novidades de mais um dia como qualquer outro, como nenhum.
Eu era o mais falante, o que lidava melhor com as situações inusitadas com as quais sempre deparávamos. Já fiz tanta madame comprar leite sem rótulo, e vilões de seriados nos perdoarem as vidraças quebradas, que perdi a conta.
Havia o problemático, que nenhuma mãe queria como companhia pro seu filho. Ah quanta falta de percepção, se soubessem o sangue que esse rapaz já deu pelo resto de nós... Hoje dou uma risada abafada relembrando esse descaso, mas na época era complicado amenizar isso. Bem... Na verdade deixávamos ele jogar como meia-direita e tudo voltava à estaca zero.
- Não vá se sujar!!!!
Mas que alienígena não se sujaria na prova mais disputada das Olimpíadas?? É claro que ele se sujou, se chafurdou na lama como um animal sem dono, e não suficiente ainda contribuiu para a imundice dos demais. Esse de quem falo agora era o mais ativo, fazia pontes das pernas dos transeuntes, e autódromos do pavimento da rua sem saída. Não era pra menos: era adorado por demais. Quanta criatividade...
- Que tal se as mesas fossem grandes dinossauros? Laçarei todos com meu cadarço de alcance infinito!
- Está nascendo um terceiro braço em mim. Quando ele crescer, vou poder nadar mais rápido que um tubarão.
- Quando eu morrer, daqui uns quinhentos anos, vou prum lugar só com carros de corrida pra eu pilotar até enjoar. Bom... E quando eu enjoar eu venho visitar vocês e assombrar seus filhos... haha
E quem disse que não acreditávamos? Tudo o que ele dizia, cumpria no ato. E eu sempre era o primeiro a apertar a sua mão a cada tarefa impossível que ele nos trazia encharcado de suor e lágrimas.
Mas tinha um de nós que nunca acreditava nele. Na verdade, não acreditava em nada. Nem nos sorrisos, nem nos presentes de Natal, nem nas pipas que ficavam para sempre lá, coladas no céu, mesmo ao anoitecer.
Aos olhos de sua desconfiança, os atos heróicos dos demais eram revistos, redecorados, e se tornavam banais. Mas isso não era ruim, alimentava nosso ímpeto de mais, pois tínhamos que superar cada aventura de minutos atrás como se elas nunca houvessem existido. Ele fazia esse favor, nos tirava do teto de volta pro piso, cortava nossas asas e ainda pregava nossos pés.
E assim seguíamos com planos da conquista do bairro, ou ao menos das garotas do fim da rua, sempre as mais requisitadas. Eu, de costume, era o porta-voz dos recadinhos esdrúxulos que escrevíamos em conjunto, em favor do outro que não conseguia raciocinar direito só de pensar em sua musa.
Muitas vezes deu certo, muitas vezes não. Mas não me lembro de ninguém ter saído gravemente machucado dessas brincadeiras de lábios que timidamente se tocaram ou de rejeições em aniversários alheios.
Não visito essa rua há mais ou menos 40 anos. Mudou de nome, o pavimento foi trocado, e agora ela tem uma saída pra uma enorme avenida onde é impossível imaginar que nossos feitos poderão ser repetidos.
Hoje o sol desaparece no firmamento de sopetão. As estrelas dão a impressão de estarem mais ausentes uma das outras. E as manhãs que chegam me mostram um tom diferente, mas não sei explicar exatamente se mais escuro ou mais claro.
Todos seguimos em nossas vidas com desvios ao longo de todo o percurso, e as notícias que chegam em pombos-correios bêbados me dão vontade de gritar. Ou de sumir.
Mas até hoje, depois de crescidos, meus filhos não entendem porque eu sorrio toda vez que comentam de uma sensação estranha, porém reconfortante, que sentem antes de dormir.

8 comentários:

José Gomes disse...

Tem um poema de Bandeira que fala nas ruas que mudam de nome. O estilo da narrativa é cativante ao perscrutar os interiores de cada personagem.

José Gomes disse...

ah, e, faltou dizer:
http://saraugourmet.blogspot.com

by pisterovix

Engel disse...

O poema é Evocação do Recife, creio
E quanto ao conto... Sensacional

Unknown disse...

Aaaah... Esse conto!
Não o li ouvindo "To Be Myself Completely" mas, mesmo assim, ainda é um dos meus favoritos! :P

Um beijo na testa, meu jovem rapaz!

Adriana disse...

Lindo poema do Bandeira e lindo conto do Vini. Esse garoto tem o dom!!

Varandas News disse...

Diretooo! "Felomenal!"

Grilo disse...

Caralho, Vini...

José Luís disse...

Esse conto soa Surrealismo!
MAs suas passagens são boas (Y)